terça-feira, julho 14, 2009

FLIP, PARATI. PARA TODOS?

“Recolhe tudo e guarda”, disse-me o fiscal. Perguntei: “Por quê?”. “Você tem autorização pra vender”, falou. Eu disse: “Não”. “Então recolhe e guarda, senão nós vamos apreender.” Este foi o meu primeiro diálogo de vários com os “homi-da-lei” da FLIP, Festa Literária Internacional de Parati, considerado o principal encontro literário do país, que aconteceu entre os dias 01 e 05 de julho de 2009, na cidade histórica do Rio de Janeiro. A brigada de segurança contava com três fiscais da Secretaria de Finanças da Prefeitura, mais alguns homens com uniformes da FLIP, que ao total andavam sempre em grupo de 05 à 07 pessoas.

O que eu estava contrabandeando? Livros. Assim como dezenas de poetas e escritores de todos o Brasil, estive durante muito tempo aguardando ansiosamente a chegada da sétima edição da FLIP para isso: trabalhar, divulgar minha obra, vender livros. Não fui para ver as mesas com Chico Buarque, Antonio Lobo Antunes, Gay Talese, entre outros convidados. Não porque não fossem interessantes, assim como a própria cidade, patrimônio histórico da humanidade que traz belezas naturais incríveis, mas mais pelo fato de que precisava trabalhar. Acabei de imprimir uma segunda tiragem dos meus livros. Fiz dívida com a gráfica. Tenho outras contas pra pagar. Então, fui pra batalha. Eu e vários outros parceiros e parceiras da Litera-Rua.

Mas pela primeira vez, em sete edições do evento, não teve acordo. Os caras não estavam deixando a gente divulgar nosso trabalho, na rua, de mano-a-mano. Perguntei ainda para o fiscal, tentando ser diplomático: “Como faço pra obter a autorização, então?” “Você tem que ir na Associação Casa Azul, da administração do evento. Lá eles informam.” Tudo bem, pensei. Vou até o camping, deixo uma parte dos livros na barraca, já que nessa hora estava com mais de trinta quilos de livros nas mãos e nas costas, e vou buscar essa tal autorização. No caminho, ainda trombei com Caco Pontes, Pedro Tostes e Berimba de Jesus, do coletivo Poesia Maloqueirista, que estavam mangueando seus livros próximo a Tenda dos Autores. Ainda disse para o Pedro: “Fica esperto, os caras mandaram eu recolher, falaram que na próxima vão apreender o material.” “Beleza. Eles são só três (fiscais), a gente dá conta.” E foi só o tempo de deixar uma parte dos livros na barraca, pegar a minha máquina fotográfica voltar para o Centro Histórico, próximo a Igreja Matriz para ver uma cena cômica, mas que foi trágica no momento que aconteceu: um poeta, com as mãos pra trás, enquadrado. Prova do crime? Seus livros. Dezesseis livros apreendidos.


O início da via-crucis
Tudo isto aconteceu no dia 02 de julho, na parte da manhã, segundo dia do evento. Eu, Berimba e o Pedro Tostes, que teve os seus livros confiscados, ficamos revoltados. Entre as possibilidades do que fazer, decidimos ir até a sede da Off-FLIP, evento que acontece durante a Flip e que conta com uma programação independente e paralela a Festa, mas que já é tradicional e aguardada também pelos visitantes. Fomos falar com o Ovídio, um dos organizadores da Off sobre o absurdo da situação, principalmente porque a Poesia Maloqueirista fazia parte da programação da Off-FLIP. Ovídio ficou surpreso, fez alguns contatos, prometeu fazer barulho mas não resolveu nossa situação. Resolvemos então seguir o conselho do fiscal e irmos até a Associação Casa Azul, responsável pela administração do Evento. Chegando lá, mesma cara de surpresa. Ninguém sabia que os poetas e escritores estavam sendo intimidados e perseguidos nas ruas. Pior, ninguém sabia o porquê. Perguntamos sobre a autorização. “Não sei, vocês tem que ver com a prefeitura. Mas teve gente que já foi lá e eles mandam de volta pra cá”, nos disse Patrícia, que estava no atendimento.

No mesmo instante, ela nos orientou a procurar a Pousada Vila do Porto, e falar diretamente com algumas pessoas ligadas à produção, Didito ou Bernadete. Fomos. E aí, o que era ruim, ficou pior. A recepção das pessoas ligadas à produção foi extremamente grosseira, trataram-nos como nada. Não nos colocaram em contato com Didito nem com Bernadete e, ali, já deixaram claro, era uma posição oficial do evento: não permitir a divulgação e venda de livros nas ruas. Motivo: não queriam transformar a FLIP num evento comercial.

Isso mesmo, não foi piada. “Não queriam deixar a gente vender os livros nas ruas para nós não transformarmos a FLIP num evento comercial?” Bem, talvez os produtores do evento tenham se esquecido da movimentação que a Festa traz para as pousadas, redes de hotéis, bares, restaurantes, turismo. Sem contar os parceiros: Rede Globo, Itaú, Unibanco; a Livraria da Vila, oficial do evento. Mas é tudo pela cultura, ok?

Depois do momento non-sense, buscamos outras alternativas. Amigos, jornalistas. Pedro tentou acionar um pessoal do jornal O Globo. Eu falei com um repórter da Folha de S.Paulo. Mas, não adiantou. Parece que a apreensão de livros de um poeta na rua, durante uma festa literária em pleno século 21 não é notícia. A única pessoa sensibilizada nesta história foi o nosso cabramigo Marcelino Freire, que comprou a nossa indignação e prometeu falar sobre o assunto em mesas e com pessoas ligadas ao evento.


A FLIP QUE NÃO SAIU NA TV
Nesta batalha pelo direito ao trabalho, não apenas poetas e escritores da rua foram discriminados. Outros trabalhadores, artesãos, foram extremamente prejudicados com a repressão. As tradicionais comunidades quilombolas, indígenas e caiçaras, que resguardam a cultura popular e milenar da cidade, foram impedidas de exibir o seu trabalho durante o evento. Revolta, indignação. “Quem são eles, quem eles pensam que são?”, eu tentava entender. Como é que um evento, que vem de fora, chega e quer mandar na praça, nas ruas, quer descaracterizar toda uma cidade? A sensação é a de um convidado que chega na sua casa, te coloca pra fora e se tranca lá dentro, com sua mulher e filhos. Absurdo.


Por isso que na sexta-feira, dia 03 de julho, houve um grande protesto do Fórum das Comunidades Tradicionais Indígenas, Quilombolas e Caiçaras. Um protesto bonito, que reuniu muita música, batuque e palavras de ordem. Que percorreu a cidade, juntando mais de duas mil pessoas pelas ruas estreitas e tortuosas. Levando o problema das comunidades – que além da repressão durante a festa, sofrem com a especulação imobiliária e o turismo predatório - para as mesas e bares, botando a água no chopp. Sem agressão, com conscientização. Luta pela dignidade. Pelo valor. Sempre aos olhos atentos dos “homi-da-lei”.

Acompanhei todo o cortejo do protesto. Depois fui encontrar-me com Pedro Tostes. Ainda tínhamos um problema para resolver. Já havíamos falado com outros poetas e escritores. Todos revoltados. Alguns com medo. Vieram para a Flip pra tentar se levantar. Corriam o risco de ter o material apreendido, voltar com um prejuízo maior. O clima de repressão estava brabo. Os fiscais não davam folga: se comunicavam por rádio, apareciam em todos os lugares. Na quinta-feira, haviam trabalhado até as sete e meia da noite atrás da gente!

Na sexta-feira, por indicação de Marcelino, procuramos a Sra. Silvia, na Central de Atendimento do Autor. Depois de um chá-de-cadeira de uns dez minutos, deixando a gente na chuva, ela nos recebeu. Disse que não podia fazer nada. “Nós gostaríamos de falar com o Didito, da produção, só isso. Passe o nosso telefone pra ele.” Ela não passou. Ela não ligou. Disse que não podia fazer nada, e nos deu as costas.

Voltamos à Off-FLIP, falamos com a Bia, uma das organizadoras da Off. Ela ligou diretamente para o gabinete do prefeito, José Carlos Porto Neto (PTB) e a prefeitura também foi clara: estávamos proibidos de divulgar ou vender nosso trabalho nas ruas de Parati. Como assim?

PARATI. PARA TODOS?
A decisão de impedir poetas e escritores de vender seus livros em Parati foi totalmente arbitrária. O livro estava sendo comercializado pelos próprios autores, não era uma mercadoria pirateada, não era uma mercadoria roubada. Pior, desde 2004 o senado aprovou uma lei que colocou fim a cobrança de taxas e impostos sobre os livros. Desde 2003 o governo federal aprovou a lei 10.753 que institui a Política Nacional do livro e que define, entre outras coisas, o “livro (como) meio principal e insubstituível da difusão da cultura e transmissão do conhecimento, do fomento à pesquisa social e científica, da conservação do patrimônio nacional, da transformação e aperfeiçoamento social e da melhoria da qualidade de vida”. Isso sem falar nos direitos de ir e vir e de liberdade de expressão. Quem é a Flip ou a Prefeitura de Parati para decidir quem deve ou não divulgar seus livros pelas ruas? Baseado em qual Lei? Desde quando a poesia, a literatura tem que pedir licença?

Devido a pressão que fizemos, poetas, escritores, a movimentação junto a turistas e convidados, a denúncia na imprensa – que no final não saiu nenhuma – e a intervenção de Marcelino Freire diretamente com Flávio Moura, diretor de programação da Flip, na sexta-feira de tarde conseguimos falar com o Sr. Didito, ligado a produção do evento. Pedro Tostes entrou num árduo diálogo com o mesmo justificando o direito de ficarmos nas ruas, a história da literatura marginal, periférica, maloqueirista, cordelista, ou seja, a Litera-Rua, e finalmente conseguimos dobrá-los. A autorização foi concedida. Estávamos liberados para trabalhar. Mas ficou uma pergunta: deixar que uma única pessoa decida quem trabalhe ou não nas ruas de Parati não é demais? Não é abuso de poder?

No sábado, finalmente, nós pudemos ir pra batalha. Vitória? Sim. Em partes. Vencemos porque não nos dobramos. Um grande grupo de poetas, escritores da rua fizeram uma correria, acionaram seus contatos, conversaram com pessoas para reverter a situação. E conseguimos. Aí está a vitória. Mas saímos feridos, principalmente pelo fato de termos perdido três dias do evento, praticamente: quarta, quinta e sexta. Muitos poetas e escritores saíram no prejuízo, já que o sábado não foi suficiente para pagar as suas despesas. Outros tantos, indignados e humilhados, prometeram não mais voltar para Flip. Nem pra Parati.

Da sétima edição da Flip, ficou uma lição: a Litera-Rua, não e bem-vinda. Não falo pelas pessoas da cidade, turistas, moradores, que não só abraçaram a nossa causa mas também ficaram revoltados com a repressão, falo principalmente pelas autoridades oficiais e pelos organizadores do evento. Talvez nunca tenha sido, já que até o momento nenhum escritor e poeta ligado a recente literatura marginal ou periférica foi convidado para participar de mesas, debates e outros. Lá, com exceção da Off-FLIP, que faz uma programação paralela, nós somos ignorados. Éramos... agora a tática é outra. É a do enfrentamento. Eles não nos querem lá. E vão fazer o que é possível para atingir isso. Mesmo que seja necessário reprimir, censurar, expulsar.


A Flip corre o risco de se tornar uma festa cada vez mais elitizada, fechada. Restrita a quem pode pagar, comprar, consumir dentro dos seus padrões oficiais, horários e produtos pré-determinados. Tudo aquilo que faz mal a literatura e impede que ela possa crescer, expandir, se tornar atraente e viva.

Pedro Tostes e seu Termo de Apreensão

Neste ano que a festa homenageou o grande escritor e poeta pernambucano Manuel Bandeira, eles deveriam ter observado melhor as suas palavras, principalmente a do seu poema Poética, em que ele diz: “Estou cansado do lirismo bem comedido / Do lirismo bem comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. Diretor (...)” Nós também.

E avisamos: não importa que não sejamos bem-vindos. Por enquanto, a festa está em uma cidade. Patrimônio histórico da humanidade. Ela é pública e aberta. E se é de todos, tem que ser também da rua. Tem que ter a nossa cara. Nossas frases, nossos poemas. Nossa arte: digna, única e legítima. E gostem ou não, nós literalmente continuaremos a “invadir sua praia”. Não só com a vitrolinha, mas com a maletinha. Cheia de livros.


Rodrigo Ciríaco é historiador, integrante da Cooperifa e autor do livro de contos “Te Pego Lá Fora” – Edições Toró. Contato: rodrigociriaco@yahoo.com.br

12 comentários:

Entre mundos disse...

ai ai...
Bons velhos tempos em que tinha tudo que queria da ponta de meus detos neste mundo virtual.

Te pegolá fora...
"Em santos ou em sampa".(mesmo autor)

Caco Pontes disse...

Para Eles, é farra nos gabinetes. Para Nós, é fanfarra nas ruas.
Tamo junto, hermano, fortalecendo o caldo, com pimenta.

abço!

Anônimo disse...

Quando pensamos em inclusão e luta por espaço para novos autores, não estamos dizendo somente na virtualidade. Em espaços onde a institucionalidade quer a todo custo propagar vorazmente sua propaganda não há lugar para os independentes. É uma ditadura imposta pelo modelo de desigualdade presente em todo o lugar onde os novos semearam e que eles querem sozinhos fartarem com a colheita. Lamentável incidente que oportuniza uma ampla reflexão e mudança de atitude daqueles que não se sentem representados. O primeiro gesto é esse. daí é preciso organizar um verdadeiro manifesto de repúdio e solicitação de políticas públicas em favor pelo escritor emergente. Conte conosco da Nova Coletânea. Saiamos da imobilidade. Literatura urgente... "O povo tem fome de quê? O povo tem sede de quê?". Eu tenho de justiça. Que ela seja feita! tenho dito

fernando lalli disse...

Canalhice da brava. Teci um comentário de apoio e revolta com essa história no meu blog. É um relato que TEM que repercutir de alguma forma. Não pode ficar só nisso.

Um abraço!

Rubens da Cunha disse...

parabéns pela luta. muito digna. muito necessária.

Pádua Fernandes disse...

A principal geração poética da década de 70 fazia exatamente isto: confeccionar os próprios livros e vendê-los por aí. Naquela época (ditadura militar) e nesta (ditabranda), os escritores continuam a ter que lutar contra o silenciamento.
Abraços, Pádua.

Wellington de Melo disse...

Lamentável. Estou organizando uma festa literária em Pernambuco, chamada FREEPORTO. Lá não haverá isso. Sinta-se convidado. Abraço!

Nei Duclós disse...

Coloquei um link e fiz um alarde lá no Diário da Fonte.
http://outubro.blogspot.com/2009/07/riqueza.html

Trata-se de um escândalo. Esse acontecimento desmascara a ditadura. Em 1969,quando a ditadura estava sob a guarda do Exército (hoje está sob a guarda do estamento político civil) eu e outros autores vendemos livros mimeografados nas ruas de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Nunca apreenderam nossos exemplares. Significa que eles intensificaram a repressão, se condolidaram sob a máscara de uma falsa democracia e usam o dinheiro público, extorquido da nação, para celebrar o Mesmo, a meia dúzia de autores carimbados regados a ouro.

Tatu disse...

é isso aí rodrigão,
vamo escrever ler, rir, ser preso e deus nos acuda...

repressão pra reprimir poeta consagrado em arte de primeira.
www.otatubola.blogspot.com

Marcelo Nocelli disse...

Só não podemos parar! É preciso pensar em algo para o próximo ano... Quem sabe um espaço para reunir todos esses autores da Rua (pelo menos por algumas horas) e expor os livros como numa feira... Algo grande... pois se houver outra presepada dessas... Também será grande a visibilidade!

Marcelo Nocelli
http://www.mnocelli.blog.uol.com.br

Edson Bueno de Camargo disse...

Livro é uma coisa muito perigosa.

Mada disse...

Indiquei teu texto no meu site. Parabéns pela persistência. Que história esquisita esta viu...