sexta-feira, março 06, 2009

MATÉRIA - REVISTA ÉPOCA - NA ÍNTEGRA

A França é (quase) aqui

O enredo do filme vencedor da Palma de Ouro de Cannes é sobre conflitos na escola na França. São bem parecidos com os vividos no Brasil

Ana Aranha

As escolas públicas brasileiras não estão tão longe da realidade francesa. Infelizmente, não nos fatores que indicam qualidade de ensino, como investimento nos professores, bons livros didáticos e turmas com poucos alunos. As escolas francesas e brasileiras se igualam nos aspectos que não têm relação com o conteúdo das aulas: nas perguntas que fogem da matéria; nas tentativas do professor de se aproximar dos alunos; na atuação da turma do fundo, que tira sarro de quem erra as respostas; nas reuniões do conselho, em que os professores gastam mais tempo discutindo a máquina do café que educação.

Essa realidade é mostrada no filme francês Entre os muros da escola, ganhador da Palma de Ouro do festival de cinema de Cannes, na França, que estreia no Brasil na sexta-feira. Nos 30 países por onde passou, o filme foi aclamado como um retrato universal da relação entre professores e alunos nos dias de hoje. Uma relação em crise. No Brasil, a semelhança foi constatada por dois professores e oito alunos de duas escolas públicas paulistas que ÉPOCA convidou para assistir ao filme e debatê-lo. Para cada cena, eles tinham uma história similar, vivida na periferia de São Paulo.

Um professor e uma classe são os protagonistas da história. Ele, um professor de francês calejado pelos quatro anos de trabalho na periferia de Paris e empenhado em convencer seus alunos a fazer melhor uso da língua. A classe, uma turma de 7a série dividida pelas diferenças de religião, classe social e nacionalidade (a França recebe muitos imigrantes da África), mas unida na convicção de que a aula não lhe interessa. Para filmar situações fiéis ao cotidiano da escola, o diretor Laurent Cantet usou professores, alunos e pais de verdade como atores. Rodado o tempo todo dentro da escola, com os burburinhos do pátio e o som estridente do sinal como única trilha sonora, o filme faz o espectador sentar dentro da sala de aula. Ele se insere no estilo “docudrama”, que vem fazendo sucesso hoje. O estilo confere um tratamento de dramaturgia aos fatos reais e aproxima o espectador das emoções da história.


ALUNOS BRASILEIROS E FRANCESES: HISTÓRIAS CRUZADAS Alunos franceses que fizeram o filme Entre os muros da escola no estúdio em Paris (fundo branco). Em frente ao muro grafitado, alunos da periferia paulista que se identificaram no filme: 1. Bruna da Silva Fermino Bezerra 2. Rebecca dos Santos Teixeira 3. Brena Marielle Silva Martins 4. Danilo Emerson Salomão de Castro 5. Paloma Gabrieli Santos Gonçalves 6. Bruno Vieira Rodrigues 7. Eduardo Rodrigues Valadão 8. Arnaldo Santos Trentin Morais



Cantet tomou como base um livro de experiências escrito pelo professor da periferia de Paris François Bégaudeau, que interpreta a si mesmo no filme. O livro será lançado no Brasil junto com o filme (Entre os muros da escola, Editora Martins Fontes, 262 páginas, tradução de Marina Ribeiro Leite). Com a sala montada e as câmeras ligadas, o diretor dava a deixa das situações descritas no livro a um ou dois personagens. Sem saber o que ia acontecer, o resto da sala improvisava a partir daí. Uma das cenas capta o diálogo truncado entre professor e alunos durante uma aula de gramática. “Por que quando o senhor vai dar exemplos usa sempre esses nomes ‘coxinha’, tipo Bill?”, “Para que vamos aprender essa linguagem da Idade Média?”, “Estão dizendo por aí que o senhor gosta de homem. É verdade?”. A aula acontece em círculos. Entre descobrir que “coxinha” é uma gíria para careta, convencê-los de que vão precisar usar o imperfeito do subjuntivo e “não, não sou gay, qual o problema se fosse?”, o professor tenta puxar os alunos de volta para a aula sem deixar de responder a seus questionamentos.

“Fora a estrutura da escola, os diá­logos são os mesmos que vivemos aqui”, diz o professor de história da rede estadual de São Paulo Rodrigo Ciríaco. Como François, ele escreveu um livro de contos inspirado em sua experiência na rede pública, Te pego lá fora (Edições Toró, 107 páginas, R$ 15). Em um dos contos, Ciríaco descreve uma reunião do conselho escolar em que se julga o que fazer com um aluno que discutiu com o professor e, sem querer, o machucou. Ciríaco, na figura de um rato que assiste a tudo de fora (ou de baixo), é o único a perceber que o aluno só perdeu a cabeça porque foi pressionado a fazer algo que não sabia: ler. No filme, em uma cena de conselho muito parecida, François é o único a saber a verdadeira razão do aluno em julgamento por ter agredido sem querer uma colega.

As mesmas situações, acontecendo em contextos tão distintos, revelam um ponto de tensão da educação pública. O (des)equilíbrio de força entre professores e alunos. A partir da década de 70, educadores passaram a questionar a autoridade excessiva do professor – antes o dono da verdade e da palmatória. De lá para cá, os alunos são menos reprimidos e cada vez mais estimulados a participar da aula e a desenvolver o senso crítico. Mas a mudança deixou um laço solto: sem o medo, como conseguir que um adolescente respeite seu professor? Para agravar o problema, alguns pais dão liberdades excessivas para as crianças em casa, e elas chegam à escola com resistência em aceitar limites. “Muitos adultos hoje confundem o conceito de igualdade perante a lei com a igualdade de papéis. Isso gera uma horizontalização das relações, que coloca em xeque a autoridade do professor”, afirma Yves de La Taille, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Ciríaco já gritou, fez longos silêncios, bateu na mesa, até apito usou para chamar a atenção da sala. “Eu vejo a aula como um fronte de batalha. Os alunos são aliados que você conquista no dia a dia. Não tem receita nem garantia para as próximas aulas. Se mostrar fraqueza, eles são cruéis.” O filme mostra como pequenos deslizes do professor podem levar a situações-limite. Ao dar abertura demais para a turma, François é bombardeado por críticas e agressões verbais. E começa a responder em tom de ameaça: “Se você continuar assim, vai se dar mal!”. Quanto mais respostas atravessadas ele dá, mais é questionado. Até que explode e passa a usar a mesma linguagem agressiva dos alunos. Ver o professor deslizar de seu papel foi um choque para os adolescentes do filme e da plateia. A reação foi em cadeia: “Nooossa...”.

Ao sair do cinema, Ciríaco e Silvia dos Santos Mello, professora da Escola Estadual Condessa Filomena Matarazzo, também convidada a assistir ao filme, tentavam entender onde François errou. Eles já viveram situações parecidas, quando sua autoridade foi desafiada diante da sala toda. “Nessas horas, cai um véu na minha frente, preciso me acalmar para enxergar o que deve ser feito”, diz Ciríaco. “Ali, dependendo de sua reação, ou você perde ou ganha a classe toda”, diz Silvia. Ela viveu isso durante a aplicação de uma prova. Um aluno estava ditando alto as respostas para os outros, e ela lhe advertiu que, se continuasse, sua prova seria anulada. Em tom de ameaça, o aluno ficou em pé na sua frente e, olhando em seus olhos, pediu para ela repetir o que faria. “Ele tinha 2 metros e já tinha batido em vários alunos. Eu me vi caída no chão, agredida. Mas a classe estava esperando, tive de repetir o que já havia dito.” A reação do aluno foi amassar a prova, jogá-la no lixo e sair da sala. Para Silvia, a melhor solução dentro das circunstâncias. “Já vi aluno ameaçar professor dizendo ‘conheço quem mata’. E tem professor que responde ‘conheço quem morre’. Eu não entro nesse jogo.”

Silvia sabe que, igualando-se aos alunos, dificilmente conseguiria conquistar seu respeito. Para quatro adolescentes recém-formados em seu colégio, que também foram assistir ao filme, algumas das piores recordações da escola são da aula de uma professora que vivia na defensiva. “Por causa de três alunos, ela cismou que a sala estava contra ela e passou a tratar a gente de forma diferente”, diz Eduardo Rodrigues Valadão, de 17 anos. Brena Marielle Silva Martins, de 17, uma das mais estudiosas da sala, desistiu de tirar dúvidas porque só recebia respostas pela metade. “Isso quando ela não fingia que não ouvia a gente chamar”, diz Rebecca dos Santos Teixeira, de 18. A professora que não ouvia os alunos também deixou de ser ouvida por eles. Além de sua aula ter o maior nível de bagunça; segundo os alunos, ela ganhou apelidos pejorativos. Para Arnaldo Trentin Morais, de 18, os professores não deveriam se ofender com a indisciplina, porque nenhum aluno começa a fazer bagunça para provocá-los. “É mais um jeito de fugir da aula, por falta de interesse na matéria mesmo.”

A distância entre o conteúdo e a realidade dos alunos é a origem de grande parte dos problemas na escola. Por mais flexível e dinâmico que o professor seja, ele continuará falando de regras trigonométricas, fórmulas de física ou características do barroco para adolescentes em fase de ebulição hormonal. Até adultos teriam dificuldade em se concentrar nesses temas durante quatro horas. Ciríaco vive o dilema todo começo de ano em que dá aula para a 5a série. É quando ele precisa explicar o que é história e o que é tempo cronológico para meninos de 11 anos. “Eu olho a carinha deles e só vejo pontos de interrogação. O conteúdo é muito abstrato para essa idade.”


INSPIRAÇÃO FRANCESA François é o personagem principal do filme, baseado nas histórias de seu livro


REALIDADE BRASILEIRA Ciríaco escreveu um livro de contos inspirado nas situações que viveu como professor


No fim do ano letivo do filme, uma aluna confessa – em voz baixa, e só para o professor – que não aprendeu nada. O espectador afastado da escola pode imaginar que a cena é um toque de ficção. Até François resiste em acreditar no que está ouvindo. Nada? Mas alunos e professores da periferia paulista foram unânimes em reconhecer, na personagem, uma figura comum das escolas públicas no Brasil. É o aluno que não aprendeu a ler e escrever direito nas primeiras séries, mas, graças à política de progressão continuada (em que o aluno raramente repete), ele segue passando de ano. Ciríaco calcula que, em média, há quatro alunos não alfabetizados em cada classe em que ele já lecionou. “Na 5a série, estudei com um menino que não sabia ler. Eu ficava feliz quando o via desenhando, pelo menos estava fazendo alguma coisa”, diz Bruna da Silva Fermino Bezerra, aluna de Ciríaco. “Aí, do nada, ele se transformava e queria ser o bambambã, bater nos outros.” A professora Silvia diz que é comum encontrar grandes dificuldades de aprendizado entre os alunos mais bagunceiros. “É difícil lidar com a carga de não acompanhar o resto da turma, muitos acabam descontando na agressividade com os colegas ou com o professor.”

François, Ciríaco e Silvia dizem que procuram se aproximar desses alunos – e de todos os outros –, mas convivem com colegas que já desistiram de suas classes. Há no filme uma cena em que um professor volta da aula transtornado, desistindo de tudo. “Eles parecem animais no cio, que apodreçam nesse bairro de fim de mundo em seus empregos de classe baixa”, diz. Segundo os quatro alunos de Ciríaco que foram assistir ao filme, todos na 7a série, não é difícil perceber quais são os professores que assumem essa postura. “Tem uns que falam na nossa frente ‘vocês aprendendo ou não, eu ganho meu salário igual’”, diz Paloma Gabrieli Santos Gonçalves, de 14 anos. “Outros entram, passam a lição na lousa e vão embora, como se a gente nem estivesse lá”, afirma Bruno Vieira Rodrigues, de 13. Em ambos os casos, a reação da maior parte da turma é a mesma: desistir daquela aula.

O maior sinal para a classe de que a bagunça está liberada é quando o professor faz ameaças de punição, e elas não são cumpridas pela direção. Um problema que, pelo menos segundo o filme, parece exclusivo do Brasil. Danilo Emerson Salomão de Castro, de 15 anos, conta que certa vez foi enviado à direção com a promessa de que sua mãe seria chamada. “A professora ficou lá dentro um tempo, nem sei se falou mesmo com o diretor ou se só pegou um cafezinho. Depois voltamos para a sala e nada. Aí é que a gente conversa mesmo.” É o professor quem sai manchado, mas a ausência de punição não é culpa dele. Muitos diretores da rede pública de São Paulo têm outros trabalhos e não passam o dia todo na escola. Quando o professor chega com o aluno a sua sala, pode dar com a cara na porta. E há os que simplesmente despacham os dois de volta, como aconteceu com Danilo.

No filme, François vive o drama inverso. Ele teme recorrer à direção da escola, que é muito rígida em seus procedimentos e pode exceder na punição de um aluno que, na verdade, precisa de cuidados especiais. Para o professor da USP Yves de La Taille, lidar com o comportamento do aluno é mais difícil quando a escola tem uma direção ausente. “Falta às instituições no Brasil explicitar suas normas e fazê-las valer por intermédio da direção e da coordenação.” Ele afirma que regras, limites e punições sejam bem divulgados para os alunos antes que os problemas comecem a acontecer. Assim, todos os funcionários da escola podem agir com o respaldo da instituição, e o aluno sabe as consequências de sua ação.

As tensões das relações humanas são as mesmas no Brasil, na França e no mundo. Mas as carências de gestão e de estrutura da rede pública brasileira multiplicam os problemas. O colégio Jornalista Francisco Mesquita, onde Ciríaco dá aula, em nada lembra o ambiente limpo e colorido do filme. Enquanto François dá aula para 25 alunos, os professores do Mesquita lidam com 45 por turma. Já deram aula em salas com goteira, infiltração e até alagamento. Na hora de educação física, os alunos usam uma quadra descoberta, há anos esperando reforma. Em volta da quadra, há um gramado abandonado que dá para os fundos da escola. Como o muro é baixo, há dias em que usuários de maconha invadem a escola e fumam ali dentro, enquanto os alunos fazem ginástica.

Foi nesse cenário que, no ano passado, um grupo mais agressivo de alunos quebrou todas as regras e tomou conta da escola. Eles começaram se atrasando para a aula. Como nada acontecia, nem entravam mais, ficavam pelos corredores ouvindo música alta. No meio do ano, passavam abrindo as portas das salas só para tumultuar as aulas. De vez em quando, despejavam uma lata de lixo e saíam correndo. A diretora (que depois foi afastada) não era muito presente, e o inspetor e os coordenadores não conseguiam controlar o grupo. Ninguém sabe se foi a troca de diretor, que chegou restringindo a liberdade deles, ou a notícia veiculada na mesma semana de que adolescentes do bairro do Belém haviam feito uma “rebelião” em sua escola. Mas, no dia 17 de novembro, o grupo resolveu mostrar sua força. Jogaram bombas caseiras pelos corredores, incendiaram latas de lixo e quebraram janelas, carteiras e luminárias. No mesmo dia, uma forte chuva estourou parte do telhado, o que fez despencar uma cachoeira no meio do pátio. A luz da escola acabou. Para se proteger, os outros alunos corriam de um corredor para o outro. Alguns professores se trancaram em uma sala. A polícia foi chamada.

ÉPOCA tentou entrar nessa escola para fotografar os alunos e entender o que gerou o descontrole, mas a Secretaria Estadual da Educação negou o pedido. Por meio da assessoria de imprensa, disse que a entrada de uma repórter atrapalharia a rotina escolar. A secretaria também negou autorização para os professores e alunos assistirem ao filme. Os professores aceitaram ir por conta própria, e os pais dos alunos autorizaram sua ida. Na véspera da sessão, Silvia recebeu o falso recado de que ela havia sido cancelada. A informação chegou por meio de sua diretoria de ensino, subordinada à secretaria. Pelos depoimentos dados nesta reportagem, os professores correm o risco de sofrer processo administrativo. Há uma lei em São Paulo, e em outros 17 Estados, que proíbe funcionários públicos de criticar os atos da administração. Promulgada durante o regime militar, ela caiu em desuso – mas ainda provoca receios nos professores. Esses receios e as reações das autoridades responsáveis pelo ensino público são um forte indício de que os problemas de relacionamento nas escolas não estão apenas dentro das salas de aula.

2 comentários:

Pádua Fernandes disse...

Gostei. No final, a reportagem soube acentuar a questão coletiva, política. A vontade política de que a educação não possa ocorrer no ensino público de São Paulo, e a necessidade da Administração de que seus desmandos permaneçam de segredo.
Abraços,

Pádua

r.c. disse...

Valeu, Pádua. Acho que o importante também foi colocar a temática em pauta, chamar o governo pra Arena da discussão. Pena que eles sempre recuam no debate, preferem agir por baixo dos panos.
Abraço,

R.c.