segunda-feira, julho 13, 2009

CRANIANAS - REVISTA OCAS, Nº 66, JULHO/AGOSTO - JÁ NAS RUAS



QUER PAGAR QUANTO?

A melhor hora do meu trabalho é aquela em que eu pago. Isso mesmo, pago. Não, não tá sobrando dinheiro do meu ordenado. Sou professor. Servidor público no Estado. O que eu ganho por mês é pouco mais de três salários. Mínimos. É verdade. Pode conferir no meu holerit. Tá registrado. Mas ainda assim eu digo: a melhor hora do meu trabalho é aquela que eu pago.

Porque é a hora que eu faço o que acredito e vejo resultado. Determino as condições, número de alunos, horário, tudo o que é necessário. Não dependo do Governo. Nada de diário, avaliação periódica, retenção por falta. Não, é a hora do labor. Planejamento, ação, diálogo. Momentos mágicos. Criatividade, aprendizado. Respeito.

O que eu faço? Por exemplo, um projeto de sexualidade. Para alunos, alunas dos treze, quatorze, quinze e outros mais anos. Já estão ou não estão na idade? Para falar de sexo, o menor dos assuntos. O que interessa, na verdade, são os métodos: contraceptivos, as transformações no corpo. Gravidez na adolescência e aborto. Doenças sexualmente transmissíveis. E outros assuntos que para muitos parecem idiotices. Se não, por que ser tão ignorado? Nas escolas, ser tão desprezado? Parece que é proibido abordar a sexualidade na escola. Apesar de estar nos parâmetros curriculares. Nos temas transversais. Na cabeça dos meninos. Na barriga das meninas. Essa situação não pode ser mais ignorada. Por isso juntamos a molecada. Eu, alguns outros professores, e o pessoal do posto de saúde que fica quase em frente à sala.

O que mais? Futilidades. Romances, assassinatos, revolta e poesia. Um projeto de literatura, que também acontece fora do horário. De aula. É claro, sou professor de história. Estórias não cabem dentro do meu conteúdo programático. Nem todas. Por isso, os encontros em separados. Com escritores. Sim, ao longo de três anos foram onze. Quer conferir? Anote aí: Sérgio Vaz, Marcelino Freire, Sacolinha. Allan da Rosa, Alessandro Buzo, Dinha. Carlos Galdino, Akins Kinte, Elizandra Souza, Sérgio Vaz, Marcelino Freire. Não, não estou repetindo, estes dois últimos foram duas vezes. Conversar com as meninas e meninos. Contar suas influências, seu trabalho com as palavras pelo mundo afora. Todos leram seus textos, declamaram poemas, sortearam livros. Desmistificaram um símbolo: escritor bom é escritor morto. De terno e gravata. Na parede, com a foto enquadrada. Não, escritor bom é escritor vivo. Principalmente quando eles saem dos livros. Vêem até nós. Aqui.

E não é só isso. Agora resolvi me meter no teatro. Embolar textos, Boal com Brecht e fazer um ensaio. Eles pediram. Então vamos, ao ato. Toda semana, aquecer, alongar, conversar; exercícios, jogos e gestos improvisados. Risos, broncas, dramas e damas. E meninos. Os Mesquiteiros. Na minha escola, não é só um grupo de teatro. É a melhor parte do meu emprego.

Por isso que digo, repito e refalo: a melhor hora do meu trabalho é aquela que eu pago. Porque no restante eu não estou satisfeito. Tudo é muito complicado. Falta apoio, incentivo, estrutura. Só passo raiva, fico revoltado. Aliás, não se pode chamar qualquer prédio de escola. Depósito de gente pegaria melhor do que cola. Ou o que é um lugar onde crianças e adolescentes ficam da primeira à última aula sem entrar em sala? Pelo corredores, ouvindo rádio, chutando portas? Como chamar um lugar em que há alunos não-alfabetizados nas quintas, sextas, sétimas, oitavas séries e últimos anos do ensino médio? Tantos anos estudando e não aprenderam a ler e escrever. Onde não há – ou faltam - professores, funcionários; salas com mais de quarenta alunos, lixos sem limpar, salas há meses sem lavar. Há frustração, abandono e falta de esperança. Pode-se chamar de escola?

Não sei. Sei que para resolver tudo isso é que eu sou pago. Servidor Público no Estado. Mas preciso dizer: eu não estou fazendo direito o meu trabalho. Não estou dando conta do recado. Pra ser sincero, ninguém está. Uma grande parte olha apenas pro seu umbigo. Outro número não sai do comodismo. O Governo, convenhamos, não se preocupa com um bom ensino. E quem quer remar contra a maré sente-se extremamente sozinho.

Por isso que a melhor hora do meu trabalho é aquela que eu pago. É o único momento em que me sinto respeitado. Faço um trabalho diferenciado. As pessoas se olham, conversam. Para mim, um dos poucos momentos em que há algum aprendizado. Em que crescemos: como alunos, como professores, como gente. Pessoas que somos, mas que muitas vezes esquecemos. É apenas nas atividades que desenvolvo fora do meu horário que eu me sinto realizado. Apesar de não ter apoio do Secretário, apesar de não ter incentivo de alguns colegas, eu não me sinto sozinho. Pois ali eu tenho os estudantes ao meu lado. Eu tenho reconhecimento, me sinto valorizado.

A mediocridade está na ordem do dia. Faz parte da política pública de educação do Estado. Quem não aceita isso, tem que pagar um certo preço.


Rodrigo Ciríaco é historiador, autor do livro de contos “Te Pego Lá Fora” e professor na rede pública estadual de ensino. Contato: rodrigociriaco@yahoo.com.br

Um comentário:

Mei Hua disse...

Rodrigo, você tem toda a razão. A melhor parte do trabalho de um professor estadual, também a meu ver,não está relacionada a bônus (um logro que ainda influencia muita gente), a qualquer tipo de avaliação (saresp, saeb, enem são índices que tentam forjar uma idéia de educação completamente equivocada, um fim em si mesmo, maquiagem braba e controle perverso), conteúdos curriculares ou discussões "pedagógicas" de nível estritamente burocrático.
O que traz um leve sopro para dentro das grades e da área murada escolar são justamente as ações que estão "fora do script".
Infelizmente tenho "pago" muito pouco para obter essa satisafação, seja pelos afazeres domésticos e maternos que sobrecarregam um pouco mais os ombros do gênero feminino, seja pela obediência que acaba nos contaminando no dia-a-dia.
Por isso, quando leio a sua escrita, ao mesmo tempo em que me cobro uma postura mais radical, mais incisiva no cotidiano escolar, também fico extremamente feliz em saber que há ainda quem se ocupe do que realmente vale a pena no trabalho educativo com os adolescentes e jovens.Como já lhe foi atribuído anteriormente por outras pessoas, a melhor expressão que encontro para descrever a sua conduta é "quixotesca".

Parabéns, Rodrigo! Lendo o que você nos relata, acreditamos que ainda há luz na escuridão das salas de aula.

Também escrevo para demonstrar minha indignação para com a dura repressão sofrida na Flip. No entanto, já é sabido que esse evento não é dos mais democráticos, pelo contrário, passa longe dessa alcunha. É mais um evento para reforçar o que já está em voga literariamente falando.Ou seja, a prevalência de determinados escritores e de determinada literatura sobre as demais (dominação literária). Portanto, a terrível recepção a vocês concedida, apenas reforça essa dominação político-cultural já presente em tantos outros momentos.

Mas quando ela efetivamente acontece, é de se revoltar! Tempos sombrios...

Por outro lado, lá no front, a situação é diferente,o que pode te consolar um pouco... Tenho lido com os alunos os seus contos e eles adoram! Pedem emprestado, querem reler, é jóia!Logo mais, quando pintar uma sobra de grana (difícil no nosso hollerith, como vc já citou) te procuro para comprar outros exemplares.

Também fui falar sobre a literatura periférica na escola em evento em São Carlos (SP) (Anped) e levei algumas obras, a sua entre elas. A recepção foi ótima. Houve comentários positivos, favoráveis à inserção de autores marginal-periféricos ou da litera-rua na escola de pessoas da baixada santista, do Rio e de Minas Gerais. Foi excelente.

Então, o jeito é não esmorecer.

Continuemos na luta. O sertanejo (o periférico, o marginalizado, o professor, o aluno) é, antes de tudo, um forte.

Valeu. Abraço. Mei.

Obs: Há um tempo atrás enviei um e-mail convidando o seu grupo de teatro para assistir a uma adaptação do Arena conta Zumbi, realizada pela Cia Antropofágica e Projeto PY. Eles são ótimos e tem um histórico de luta no cenário teatral bastante importante. A temporada já acabou (eles apresentaram na minha escola e fui com eles em apresentação na Fundação CASA de Franco da Rocha, fora as da sede deles), mas se houver interesse, podemos conversar sobre uma possível apresentação para a sua turma, se vc achar interessante. Mei.