sábado, julho 27, 2013

VADIO


VADIO (por Rodrigo Ciríaco)

Hoje faz 06 graus em São Paulo.
No meu rádio de pilha o locutor diz que será uma das noites mais frias em cinquenta anos.
Acredito que ele nunca tenha dormido na rua no inverno.
O pessoal das quentinhas já passou. Trouxe sopa, trouxe cobertores. Trouxe papo, um pouco de esperança, alento. Mas já foram embora. Daqui a pouco vão estar em suas casas, a consciência menos pesada. O coração solidário no quentinho.
Eu vou continuar aqui. Minha carroça, Mixaria, Pandeiro. Frio. Sozinho.
A rede de abrigo da Prefeitura já passou também. Me chamaram para o alojamento. Nome bonito para galpão grande, vazio e aberto tão frio quanto aqui. “Os albergues estão todos lotados”, sério, não me diga?
De que adianta me tirar da rua pra me jogar num galpão? Ou mesmo o albergue, sempre na mesma condição: “Vai ter que deixar a carroça, os cachorros e sua bagunça por aqui, não tem opção”.
Tá bom. Como vou deixar a única coisa que restou, a única coisa que tenho? Como que vou abandonar aquilo que faça sol, faça, frio, chova ou alague feito rio, sempre esteve ao meu lado, sempre esteve comigo?
As pessoas não entendem: “Ah, tem gente que não quer ajuda. Prefere ficar ali mesmo”. Desculpa, você tá errada. Eu quero, eu preciso. Mas se para o meu resgate a condição é o abandono, se para me salvar eu tenho que deixar as minhas coisas, deixar os meus, eu fico.
Eu sei o quanto pesa o abandono de um vadio.
Mixaria e Pandeiro se apertam contra meu corpo. Lambem meu rosto. Parece até que leem o que estou escrevendo, meus pensamentos, e respondem em gratidão. E se aproveitam pra aquecer um pouco mais, esses cão. Assim como eu, todos vadios.
O movimento das ruas do centro diminui muito no inverno. Poucas risadas, pouca viração. Poucos pares de tênis, sapatos circulando. Imponente e altiva, só a lua. Cheia e brilhante. Parece a única coisa bonita nessa noite fria. Daria até pra fazer um soneto pra ela mas...
Frio, frio, frio. Parece que só consigo escrever isso aqui nesse diário. Frio.
Só tenho mais um dedo de cachaça. Tenho que moderar nos goles.
Ainda não estou bêbado suficiente pra dormir e, quando ela acabar, fudeu.
Não tem nenhum boteco aberto por aqui pra pedir pinga. Não tem nenhum Farrapo pra dividir a branquinha.
- Mixaria, levanta. Levanta, Mixaria. Vai caçar uma branquinha pra nóis, sua Cadela vadia. Vai, vai.
Ela balança tanto essa bunda que parece até que vai quebrar o rabo. Cachorro é bicho ligeiro, mais esperto que homem. Entende tudo essas praga.
Minhas pragas, minhas crias. Minha verdadeira família.
Porque família não é a que a gente nasce. Família não é nem a que a gente escolhe. Família é quem nunca abandona.
- Família é quem nunca abandona, entenderam?! Nunca abandona!
Não sou santo, já fiz muitas cagadas. Estou aqui por causa das minhas escolhas, das minhas cagadas. Mas família, família mesmo, é quem nunca abandona.
To ficando sentimental demais. Vou dar meu último trago. Que se foda, já estou no estrago, mesmo. Frio, frio, frio. Nem esse locutor que fala mais que a boca aquece a minha orelha nesse frio.
Quatro cobertores não resolvem nada quando o papelão é seu colchão. Quando não tem quatro paredes pra contenção.
O vento é cruel. Parece navalha a cortar ainda mais meus lábios, pés, mãos e dedos rachados. Aliás, o sangue coagulou, ou congelou, de tanto que os meus lábios e os meus dedos sangraram. As feridas já estão tão profundas quem nem parecem rachaduras, parece que cortaram com a faca mesmo.
03:56hs da madruga. Ainda falta muito pra amanhecer.
O locutor avisa que tá nevando no sul. Aqui em São Paulo não neva. Aqui as coisas congelam mesmo.
O sono tá batendo, aos poucos vencendo o frio, a agonia deste estado.
Ou é a morte que tá chegando mesmo, resolveu poupar meu sofrimento, veio logo me dar cabo.
Logo não. Ficar mais de oito horas neste estado é muito, muito tempo pra dizer “veio logo me dar cabo”. Só quem sente, só quem passa sabe o que é ficar ao relento, cada parte do corpo lentamente congelada, cada parte do corpo lentamente insensível, sem sentir nada.
Tem gente que tem medo de morrer queimado. Tem gente que tem medo de morrer afogado, asfixiado. Eu nunca tive medo, nem de um, nem do outro. Mas descobri aqui, que deve ter algo pior do que morrer queimado, afogado, asfixiado. Deve ser morrer de frio. Escrevendo aqui, neste diário. Vadio.


2 comentários:

Tiago Malta disse...

Sempre visceral Mestre-Amigo...

Paz e Luz na sua jornada

Anônimo disse...

Parabéns Rodrigo, ainda que seja um relato profundo do que acontece no cotidiano. Muitos de nós se gabam por fazer tão pouco, escondendo a real e pagando de bons... Espero que tua inquietude permeei por toda a sua vida, pois acredito que isso é o que nos movimenta e nos faz ter coragem de fazer o que tiver que ser feito... Adorei te ler, saudade amigo, desejo a ti tudo que a vida pode lhe oferecer para ser tudo que quiser ser e fazer.

... Tamô junto!

Com carinho,
Luciana.