VADIO (por Rodrigo Ciríaco)
Hoje faz 06 graus em São Paulo.
No meu rádio de pilha o locutor
diz que será uma das noites mais frias em cinquenta anos.
Acredito que ele nunca tenha
dormido na rua no inverno.
O pessoal das quentinhas já
passou. Trouxe sopa, trouxe cobertores. Trouxe papo, um pouco de esperança,
alento. Mas já foram embora. Daqui a pouco vão estar em suas casas, a
consciência menos pesada. O coração solidário no quentinho.
Eu vou continuar aqui. Minha
carroça, Mixaria, Pandeiro. Frio. Sozinho.
A rede de abrigo da Prefeitura já
passou também. Me chamaram para o alojamento. Nome bonito para galpão grande,
vazio e aberto tão frio quanto aqui. “Os albergues estão todos lotados”, sério,
não me diga?
De que adianta me tirar da rua pra
me jogar num galpão? Ou mesmo o albergue, sempre na mesma condição: “Vai ter
que deixar a carroça, os cachorros e sua bagunça por aqui, não tem opção”.
Tá bom. Como vou deixar a única
coisa que restou, a única coisa que tenho? Como que vou abandonar aquilo que faça
sol, faça, frio, chova ou alague feito rio, sempre esteve ao meu lado, sempre
esteve comigo?
As pessoas não entendem: “Ah, tem
gente que não quer ajuda. Prefere ficar ali mesmo”. Desculpa, você tá errada. Eu
quero, eu preciso. Mas se para o meu resgate a condição é o abandono, se para
me salvar eu tenho que deixar as minhas coisas, deixar os meus, eu fico.
Eu sei o quanto pesa o abandono
de um vadio.
Mixaria e Pandeiro se apertam contra
meu corpo. Lambem meu rosto. Parece até que leem o que estou escrevendo, meus
pensamentos, e respondem em gratidão. E se aproveitam pra aquecer um pouco mais,
esses cão. Assim como eu, todos vadios.
O movimento das ruas do centro
diminui muito no inverno. Poucas risadas, pouca viração. Poucos pares de tênis,
sapatos circulando. Imponente e altiva, só a lua. Cheia e brilhante. Parece a
única coisa bonita nessa noite fria. Daria até pra fazer um soneto pra ela
mas...
Frio, frio, frio. Parece que só
consigo escrever isso aqui nesse diário. Frio.
Só tenho mais um dedo de cachaça.
Tenho que moderar nos goles.
Ainda não estou bêbado suficiente
pra dormir e, quando ela acabar, fudeu.
Não tem nenhum boteco aberto por
aqui pra pedir pinga. Não tem nenhum Farrapo pra dividir a branquinha.
- Mixaria, levanta. Levanta,
Mixaria. Vai caçar uma branquinha pra nóis, sua Cadela vadia. Vai, vai.
Ela balança tanto essa bunda que
parece até que vai quebrar o rabo. Cachorro é bicho ligeiro, mais esperto que homem.
Entende tudo essas praga.
Minhas pragas, minhas crias. Minha
verdadeira família.
Porque família não é a que a
gente nasce. Família não é nem a que a gente escolhe. Família é quem nunca
abandona.
- Família é quem nunca abandona,
entenderam?! Nunca abandona!
Não sou santo, já fiz muitas
cagadas. Estou aqui por causa das minhas escolhas, das minhas cagadas. Mas família,
família mesmo, é quem nunca abandona.
To ficando sentimental demais. Vou
dar meu último trago. Que se foda, já estou no estrago, mesmo. Frio, frio,
frio. Nem esse locutor que fala mais que a boca aquece a minha orelha nesse
frio.
Quatro cobertores não resolvem
nada quando o papelão é seu colchão. Quando não tem quatro paredes pra
contenção.
O vento é cruel. Parece navalha a
cortar ainda mais meus lábios, pés, mãos e dedos rachados. Aliás, o sangue
coagulou, ou congelou, de tanto que os meus lábios e os meus dedos sangraram. As
feridas já estão tão profundas quem nem parecem rachaduras, parece que cortaram
com a faca mesmo.
03:56hs da madruga. Ainda falta
muito pra amanhecer.
O locutor avisa que tá nevando no
sul. Aqui em São Paulo não neva. Aqui as coisas congelam mesmo.
O sono tá batendo, aos poucos vencendo
o frio, a agonia deste estado.
Ou é a morte que tá chegando
mesmo, resolveu poupar meu sofrimento, veio logo me dar cabo.
Logo não. Ficar mais de oito
horas neste estado é muito, muito tempo pra dizer “veio logo me dar cabo”. Só quem
sente, só quem passa sabe o que é ficar ao relento, cada parte do corpo
lentamente congelada, cada parte do corpo lentamente insensível, sem sentir
nada.
Tem gente que tem medo de morrer queimado.
Tem gente que tem medo de morrer afogado, asfixiado. Eu nunca tive medo, nem de
um, nem do outro. Mas descobri aqui, que deve ter algo pior do que morrer
queimado, afogado, asfixiado. Deve ser morrer de frio. Escrevendo aqui, neste
diário. Vadio.