Uma semana atrás eu estava particularmente revoltado com uma situação bem particular: minha relação com a escola. Poucos dias anteriores, em 29 de março, o governo havia divulgado o "prêmio Bônus" para professores, de acordo com o desempenho de seus alunos. E eu fui, entre milhares de professores, um daqueles que não receberam nada. Nem um centavo. Nem mesmo obrigado.
Senti-me humilhado, ofendido. Primeiro, pela falta de reconhecimento no trabalho. Segundo, por estar passando por uma situação financeiramente complicada, com a conta estourada, coisas parceladas a pagar, situações que a maior parte das pessoas tem que se submeter se não tem condições de pagar suas contas a vista e não aceita ficar apenas as migalhas.
A minha indignação foi ouvida. Raras vezes nestes anos que estou lecionando. Escrevi, nesta semana que se passou, um artigo para uma revista de importante circulação que chegará em breve, agora no final de abril. Dei uma longa entrevista para uma importante jornalista da revista Época, Eliane Brum, que será publicada logo mais. Mas, tudo isso ficou pequeno, perdeu o interesse, na quinta-feira, ao nos depararmos com uma tragédia maior, mais urgente, que foi o que aconteceu na escola de Realengo: um massacre em que vários jovens e adolescentes, indefesos, foram estupidamente vitimizados e feridos. Assassinados. Marcados, para o resto de suas vidas.
O Massacre de Realengo não (i)mortalizou apenas os pequenos que estudavam na Escola Municipal Tasso da Silveira. É um acontecimento que ficará marcado na história de nossa sociedade brasileira. Por seu ineditismo. Sua crueldade. Por derrubar o último baluarte que acreditávamos ser, talvez, intransponível: os muros da escola.
Mas não é verdade. Quem trabalha cotidianamente da educação sabe bem do que estou falando: a bastilha chamada escola já foi derrubada há muito tempo. O problema é que não houve uma revolução. Tal qual a caixa de pandora, aberta, deixou não espalhar, mas adentrar todos os problemas do mundo: a violência, a insegurança, a insensatez, a intolerância. E algumas vezes eu me pergunto se houve espaço ao menos para a esperança ser guardada.
Há tempos estamos sofrendo dentro das escolas. Deixo claro que falo principalmente das escolas públicas gratuitas, já que não tenho proximidade com colégios particulares. Uma escolha de militância política e pedagógica. Mas acredito que estas não sejam, ao contrário do que muitos acreditam, incólumes dos problemas da sociedade. Basta ver a maneira como estão organizadas: verdadeiras caixas-fortes, bunkers, em que para você entrar tem que passar pela segurança dos homens de preto e dos caixas de banco. Afinal, a vida custa caro e não tente entrar num colégio particular com a matrícula atrasada.
Nas escolas públicas, há também essa idéia deturpada de se "trancar" para proteger. Mas como tudo que parece que vem do Estado é falho e decadente - e entenda, não faço aqui apologia nenhuma ao ensino particular nem sou favorável a privatização das escolas - o máximo que os governos conseguem transformar as escolas quando tentam implementar alguma segurança é transformá-las em prisões. Prédios fechados, cheios de grades que, muitas vezes, para se cruzar de um corredor ao outro, é necessário alguém passar a chave no ferrolho e abrir a tranca. Isso mesmo, trancas e cadeados, com direito ao tchum-plá-tlám! de um corredor ao outro.
Mas porquê estou falando de tudo isso mesmo? É porque eu quero dizer que a tragédia no Realengo foi assustadora por ser cruel demais, inesperada demais. Com sangue demais. E torcemos para que não se repita. Mas torcer, simplesmente, não conta. Nesse jogo - ou melhor - nesse NEGÓCIO em letras garrafais que se tornou a educação é preciso que deixemos a posição de espectadores e entremos em campo. Mudemos a tática. Partimos para o ataque. Afinal não é de hoje que nossos jovens, crianças e adolescentes são esmagadas pela instituição escolar: seja pelo "bullying", tão recorrente nas atuais notícias de jornais, seja pela insegurança, pela presença de drogas lícitas e ilícitas dentro da escola; seja por projetos políticos ineficazes que massacram estudantes e profissionais da educação: os primeiros por ficarem a mercê da oportunidade de acesso ao conhecimento, de possuírem um espaço que possam compartilhar a vivência com o outro, as diferenças, conflitos. Os segundos, por trabalharem muitas vezes em condições inadequadas, acumulando funções, com baixo salários, humilhados. Resignados e acomodados com isso. Afinal, o que se há de fazer?
Há tempos a inocência chegou ao fim dentro das escolas. Hoje, por incrível que pareça, me surpreendo muito quando vejo textos, filmes, desenhos retratando a escola com crianças sorridentes e felizes, ao lado de animais, pássaros, árvores. Flores no campo e por aí vai. Pois faz muito tempo que não encontro, por diversos momentos tudo isso. O que vejo são alunos não alfabetizados, desestimulados, sem grandes perspectivas de futuro, rendendo-se ao tráfico ou ao próximo modismo de mercado que vai fazer o mercado girar, o mundo seguir. Indo para escola para garantir ao menos uma refeição, esquecer um pouco dos problemas do mundão. Ou mesmo assim, por ter que ir. Não tem jeito.
Há tempos os jovens são massacrados. Ao contrário de Realengo, aos milhares. A única diferença é que a arma dos matadores são as canetas. Seus disparos são tintas que não pintam a escola de vermelho, não lá dentro. Até agora. Deixa para que isso aconteça nas ruas, nas quebradas, quando os meninos estiverem fazendo um esquema no tráfico, correndo dos "homi". E não há um "Wellington" para se culpar. Para se mirar e massacrar, dizer-se "louco, psicopata, animal" e tirar de mim toda a responsabilidade por esta situação. Não há. Pois no massacre cotidiano, silencioso a qual estão submetidos todos aqueles que estão envolvidos com a educação não conseguimos apontar um culpado. Não um, pois são muitos. E se vários tem a responsabilidades, quem é que vai responder efetivamente por estes crimes?
"Há tempos são os jovens que adoecem. Há tempos o encanto está ausente, e há ferrugem nos sorrisos. E só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção..."
Por estes dias, muito pensei nesta música da Legião Urbana. Principalmente nesta frase. Que não possui nada de profética. Apenas um toque realista de um artista que procura observar e retratar o seu tempo. Há vários deles que querem nos ajudar a enxergar melhor o que acontece. A pergunta é: quem quer ver? E depois de ver, o que vai fazer?
Vontade sem atitude, é igual a nada.
Rodrigo Ciríaco