Seu Ricardo morreu porque não tomava banho
Sebastião Nicomedes
Médico: “Ele está melhor que nós. A perna dele está formigando de cachaça”
E isso é que o seu Ricardo a gente não esperava. O médico escutou o coração dele e a pressão 12 por 8. O médico falou que ele estava melhor que nós. Eu perguntei: “mas e a perna dele doutor? Ele falou que tá formigando?”
O médico respondeu:- Tá formigando de cachaça. Isso é devido à bebida. - Ele bebia muito? - O quê?
Eu liguei pra dona Ana e falei do médico. Ela ficou indignada. Disse que o seu Ricardo não bebia e nem fumava. Ela mandou eu falar sobre a perna e cobrar atenção.
- E vocês então levaram ele de volta pra frente da casa da dona Ana? - Não. Foi assim. A gente estava no fim do plantão.A gente saí às oito. Então como ele ia ser medicado ainda e o médico dizia que estava tudo bem com ele, a gente fechou o plantão. O médico só dizia que o problema dele era banho. - E no hospital não dava pra tomar banho para o médico parar de encher o saco?
Nicolas e Suelena falam sobre a Assistência Social:
Suelena: - Aí é que tá. Nos hospitais tem assistente social mas ela sai as 19 horas,e só retorna depois oito da manhã. Não tem plantão delas.
Nicolas: - Não trabalham à noite e é à noite que as coisas acontecem. - E vocês ficaram sabendo que ele morreu depois que vocês foram embora?
Suelena: - Quando me falaram eu não acredite. Eu ainda não estou acreditando...
Nicolas: - Eu fiquei chocado, frustrado. O médico disse que ele estava muito melhor que nós. Vou fazer 26. Depois do seu Ricardo eu não sei mais nada.
“A Cristiane ria muito. Acho que nervoso”
Peguei carona de volta pra base central da Sé pra conversar com a Cristiane, a que apoiou na busca do senhor Ricardo após a alta do hospital e o levou pro albergue.
22:18 SAS-SÉ, base do Cape
Encontro a Cristiane, a coordenadora, e um outro coordenador. Falavam sobre o homem que morreu, brincavam que a Cristiane estava feliz. Ela contestando: “Brincadeira de mau gosto. Eu quase morri de susto isso sim.” - Você se assustou?, perguntei. - Claro moço, quem não assusta? Eu trabalho aqui há 3 anos e nunca aconteceu isso. - Como foi? - Eu estava na base Santo Amaro.Vim pra cá.Chegando aqui me falaram de um caso na Santa Casa de lá. Eu falei: ‘puxa, vim de lá agora’. A gente chegou lá e ele estava na cadeira de rodas acompanhado. Isso é raro. Morador de rua com acompanhante em hospital não é uma cena muito comum. Ele estava na cadeira, achei ele debilitado. A mulher me ajudou a por ele na viatura. Ele falou que ia dormir. (Cristiane está rindo, não soltando a voz, mas está rindo o tempo todo. Fiquei um tanto incomodado mas fui percebendo ela ria,acho que de nervosismo.Ela ria e acho que o avesso dessa reação seria o choro mas as lágrimas não vinham e o riso era como se estivesse chorando)- Cristiane de quê?- Cristiane Aparecida de Campos. Tenho 36 anos.Continua conversa: - Então eu falei pra ele ir no banco de trás que ele queria deitar e lá atrás é mais seguro pra não cair do banco. Ajudamos ele a se acomodar. Ele foi entrando e se ajeitando. E veio assim dormindo a viagem toda. Quando chegou lá pedi ajuda pros agentes do albergue pra acordar ele. Eu tentei acordá-lo e não consegui. O agente do albergue falou que ele estava estranho, com o olho aberto.Aí mexemos, conferimos, não tinha sinais vitais. Chamamos a polícia. Foi confirmado. Liguei pra base avisando o coordenador da mesa, o Nelson. Ele foi lá me apoiar. - Você é agente, isso?
- Sou técnica. O Nélson é coordenador de mesa e o Cássio coordenador geral. O plantão era do Nélson e ele foi me ajudar. Fomos à delegacia, registramos boletim de ocorrência e voltamos pra esperar o rabecão. Eu fiquei nervosa, minhas pernas tremiam. Eu falava: ‘gente, esse homem não falou, não gritou. Ele não gemeu, ele dormiu e não acordou mais, como pode?’ Em três anos que trabalho aqui isso nunca me aconteceu, sabe? Somos discriminados porque a gente trabalha com pessoas à margem. É um hospital ou outro que atende morador de rua. O SAMU mesmo foge dessa gente e transfere a responsabilidade toda pra nós. Mas nós não somos médicos, não entendo de enfermagem. Não sei dar remédio nem pra mim.Tá tudo errado. Mas eu sinceramente não acredito que vai dar em alguma coisa essa onda toda. É uma onda e vai passar. Todo mundo vai esquecer do assunto. Amanhã esse médico vai tá lá fazendo a mesma coisa com os outros moradores de rua. É assim que funciona. Cristiane foi ficando sem palavras,encurtando as respostas, repetindo, rindo.
Fui ao banheiro. Lavei o rosto que quem estava quase chorando agora era eu. Parei pra tomar uma aguinha gelada no bebedouro do corredor próximo à sala onde entrei mais tranqüilo para usar o telefone. Liguei pra dona Ana. Um homem atendeu e chamou dona Ana pra mim. Me apresentei como participante do Movimento dos Moradores de Rua e disse que queria ajudar a levar o caso adiante pra não ficar por isso mesmo. Ela, educada, me atendeu super bem e conversamos: - Dona Ana, como era o seu Ricardo? - Era uma pessoa querida.Todo mundo aqui no bairro conhece ele. Pegava jornal pra vender, descarregava caminhão. Davam para ele R$ 2, R$ 3. Parece que ele não tinha noção que pagavam tão pouco.- Ele morava na sua casa? - Sim, mas na garagem, do lado de fora.Tem uma pontinha de laje.Há um ano ele mora aqui na frente de casa. - Então ele era morador de rua? - Era sim. Mas não foi sempre assim. A mãe dele trabalhava de empregada doméstica. Quando o patrão dela morreu ela comprou um barraco na favela. Aí veio a Avenida Água Espraiada e tiraram o barraco deles. - Então ele tem a mãe dele ainda? - Ah, isso ninguém sabe. Os vizinhos dizem que ele mudou pra um lugar que precisa pegar trem. Então deve ser longe. Mas onde fica não se sabe ao certo. - E por que a senhora resolveu chamar o Cape pra tirá-lo daí da frente da sua casa? - De uns dois, três meses pra cá, ele vinha mancando de uma perna. Chamamos o SAMU que não queria levá-lo. Liguei pra polícia que falou pra eu chamar o SAMU de novo. Se eles negassem socorro ao homem levariam eles presos. Aí eles atenderam. Levaram seu Ricardo pro hospital Sabóia. Lá, deram uma injeção nele e mandaram procurar um posto de saúde. Ele apareceu aí na frente. Veio andando, segurando num pauzinho que fez de bengala. Aí piorou a perna. Chamamos o SAMU de novo e ele foi pro hospital. Ficamos batalhando um albergue pra ele, liguei para a Assistência Social do hospital São Paulo e me falaram pra ligar pra SAS. Ele era boa pessoa. Gostava de Coca-Cola e água mineral com gás. Davam para ele num barzinho aqui na esquina. - Ele tinha dificuldades pra tomar banho? - Ah, ele não tomava. Antes, ele tomava numa casa da vizinha. Depois que ela se mudou não tomou mais. Aqui em casa ele tinha medo dos cachorros e por isso não entrava pra tomar banho não. - A senhora tem quantos anos? - 54. - Eita, a mesma idade dele?- É. Pena ele viveu sem conforto e morreu de uma maneira indigna. Quando o Cape chegou, ele queria álcool pra cheirar. Estava com problemas de respiração e achava que o álcool ia abrir o nariz como na inalação. Mas a gente explicou pra ele que era um problema mais sério e que ele devia ir ao médico. Minha filha Elaine foi pro hospital. Quando avisaram que ele faleceu, ela voltou no hospital pra pedir satisfação pra médica. A médica falou pra minha filha que ele estava com cirrose hepática. - Sua filha está em casa agora? - Tá. - Posso falar com ela? Elaine (a filha) pegou a ligação. Me apresentei: - Seu nome é Elaine de...? - Elaine Fernanda Pimenta - Qual sua idade e o que você faz?- Tenho 29 anos e sou psicóloga. - Elaine, então você voltou ao hospital para protestar? Com a médica é isso? - Fui tirar satisfação com a médica que deu alta pra ele. Ela falou que ele tinha cirrose. Eu fiquei revoltadíssima. Pedi o nome dela. Mandou eu procurar um advogado. Mas me deram o nome dela: Eliana M. A. Braga. Eu consegui levantar os dados dela com o CRM e tudo. Ela falou que nós levamos um homem morto pra ela. Vê se pode?
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76692-5856-460-3,00.html
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