Sebastião Nicomedes
A segunda semana de março tinha tudo pra ser uma semana boa pra mim, daquelas do tipo sem igual. Desde o segundo sábado de fevereiro que vinha aguardando ansioso que chegasse o segundo sábado de março. Por quê? Porque todo segundo sábado de cada mês acontece a feira da troca (troca-troca) dos moradores de rua embaixo de um viaduto na baixada do Glicério. A feira da troca reúne artesãos que fazem desde bijuterias a pinturas, esculturas, arte com sucata, rolistas de roupa de pechincha, brechozeiros de calças, camisas, meias, paletós. Tem até cueca de segunda. E tem artistas, poetas, cantores, enroladores também, do tipo que pensa que toca, pensa que canta, mas não toca e nem canta nada, só faz viajar na empolgação dos aplausos da platéia que acha tudo muito engraçado. E têm talentos de primeira linha também, artistas natos que estão na rua morando mas têm dons impagáveis. E têm músicos, artistas colaboradores, simpatizantes e simpáticos cantores, bandas, grupos inteiros que fazem som profissional de primeira qualidade. Eles chegam de favor nas peruas do CAPE - aquelas peruas do São Paulo
Protege usadas comumente no transporte de pessoas em situação de rua, jovens, adultos e crianças encaminhadas ao serviço social para algum dos serviços prestados, geralmente albergues e casas de acolhida, abrigos enfim. Como a feira é de moradores de rua e o horário do dia é sempre mais tranqüilo, não custa dar uma carona para o pessoal que chega pra abrilhantar a festa sem cobrar nada. Enquanto aguardava horário pra cumprir roteiro, um motorista se aproximou de mim. Havia dado o plantão da noite e já devia ter ido embora. O motorista, cabisbaixo, comentou comigo de um acontecimento triste: um morador de rua atendido pelo Cape veio a falecer dentro da viatura (perua). Ouvi atento e fiquei abobado com a informação. Mas fiquei meio sem entender, sem acreditar.O show rolou. O clima mais ou menos. Eu estava sabendo que naquela hora havia no IML um corpo de alguém que como eu viveu nas ruas.
“Paciente encontra-se em péssimo estado de higiene, mau cheiro”
Na segunda-feira à noite a informação foi confirmada pelo coordenador-geral do CAPE, o Cássio Giorgette que ficou de me ceder cópia dos documentos. O relatório escrito feito pelo médico me causou uma indignação profunda. O caso se deu assim: eu fiquei irado, parecia que ia explodir feito uma banana de dinâmite em pedreira, espatifando tudo ao redor. Eu estava muito revoltado. À noite fiquei sem sono, pensando. Tinha que fazer alguma coisa.
Chegou a terça-feira, 7 horas. Lavei umas peças de roupa, coisa que detesto fazer, mas eu estava lavando, enrolando as horas. Passado das oito horas da manhã fui à sede do jornal O Trecheiro - Notícias da População de rua, do qual sou colaborador. Tenho uma coluna intitulada “Direito da rua”. Desde os tempos de albergue escrevo lá. Atualmente estou morando numa pensão, um quartinho menor que elevador de faculdade. Bom, meu texto já estava definido, corrigido, uma homenagem às mulheres, fazer o quê?
Foi então que entreguei a papelada ao Alderon que já estava também a par do assunto e precisava justamente dos documentos que eu reunia sobre os fatos.
Mas eu não estava satisfeito. Publicar no Trecheiro era muito pouco pra um crime tão cruel. Crime? No meu pensamento sim. Então elaborei uma nota, produzi uma notícia e espalhei pela internet às 8:40 da manhã-terça feira 13 de março de 2007 ao SUS, Ministério Público, defensorias, SAS, Comas, Conselho do Idoso, Igreja, movimentos sociais, e quem mais discursa em defesa dos direitos humanos.
Higienização faz vítima fatal
Nove de março de 2007, 19:00. A munícipe Ana Maria F. ligou pro Cape. Viatura(Kombi) 06 placas final 6 e agentes de proteção social Suelen e Nicolas da base de Santo Amaro se dirigiram à rua Felix de Souza. Foram recebidos pela munícipe Ana que indicou a presença de um morador de rua à frente de sua garagem. Foi abordado e atendido o senhor Ricardo de Oliveira, 54 anos. Queixava-se de dores nas costas e nas pernas. Com auxíio da munícipe, aceitou atendimento sendo levado à Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro. A munícipe acompanhou o encaminhamento indo em seu carro particular. Ricardo foi atendido pelo médico Osny Batista. O médico diagnosticou: paciente encontra-se em péssimo estado de higiene, mau cheiro. Receitou um medicamento. Conclusão: não se trata de uma patologia que necessita de auxílio de hospital. Trata-se de problema social: “não quer ir pro albergue”.
Às 22:55, a munícipe Ana. Maria F., que acompanhou os trabalhos de abordagem e atendimento na Santa Casa, acionou novamente o Cape informando que o senhor Ricardo havia recebido alta médica. A viatura (Kombi) 06 levou o senhor Ricardo para o albergue Cirineu (no viaduto Jacareí), no centro da cidade. Ao chegar no albergue a agente de proteção social Cristiane constatou que o senhor Ricardo não apresentava sinais vitais aparentando ter falecido. Policiais militares se dirigiram ao local e confirmaram: Ricardo de Oliveira estava morto.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76692-5856-460-1,00.html
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