quinta-feira, março 15, 2007

Desumanidades # 3

Seu Ricardo morreu porque não tomava banho
Sebastião Nicomedes


Boletim 1706/2007 5º DP Aclimação, emitido em 10/03/2007 Providência tomadas-MSG CEPOL: AGUARDANDO LAUDOS. ATÉ QUANDO?

Eu precisava fazer alguma coisa. Eu queria explicações. Eu levantava dados quando uma repórter, uma amiga especial (Eliane Brum) ligou pra mim e disse: “Escreva a respeito, vai atrás dos fatos, põe pra fora o que tá sentindo”. O que eu quero com isso? Justiça, providências, respeito. Não pode ficar assim, impune, esse caso. Topei o desafio e saí pra falar com as pessoas que vivenciaram diretamente esse caso.
18:00-SAS SÉ - Base do Cape
Procurei o coordenador do Cape, o Cássio, e o entrevistei. Ao meu modo, conversamos:
- O que você me diz desse caso- Olha, Tião, não é um caso isolado.Vem se tornando freqüente o número de pessoas que entram em óbito dentro dos albergues, dos serviços da rede de assistência. Pessoas que vêm de hospitais, postos de saúde. Nesse caso, a fatalidade aconteceu no deslocamento, o que é pior. Foi mais indigna ainda a forma que o senhor Ricardo morreu. O descaso, as negligências, as reclamações são incontáveis já. - Ele vai ser enterrado como indigente?- Não. Os documentos dele estão na casa da munícipe e ela vai nos passar pra entregar aos peritos. Ele já foi devidamente identificado.- Menos mal. E o corpo já foi liberado?- Vai ficar por uns dias aguardando parentes reclamar o corpo. Vão tentar localizar a família. - Qual foi a causa da morte? - Ainda não podemos dizer. O laudo sai em 45 dias. Mas certamente faltou atendimento de verdade, faltou vontade, faltou respeito. Ele morreu por negligência. O médico estava com nojo do paciente e ele nem foi tratado como paciente-cidadão. Foi tratado como lixo. O médico diagnosticou falta de higiene, falta de banho. Não levou o caso a sério. Ele esqueceu o juramento. (Peço ao coordenador que me arrume carona até a base de Santo Amaro. Quero falar com os dois agentes de proteção que fizeram a abordagem). - Tem uma viatura que vai pra lá daqui a pouco. Posso pedir ao motorista pra te levar junto. Ele está de serviço lá mesmo.
O último desejo dele foi Coca-Cola. Tomou água e disse o gosto estava ruim
19:35. Chegando à base procurei os dois agentes. Nos cumprimentamos sem muita alegria que os dois estavam meio aéreos. Haviam dado entrevistas por telefone. A imprensa comprou a briga. Fiquei emocionado: “Começou a justiça”, pensei.- Seu nome é Suelen, certo? - Suelena. - Suelene? No relatório do Cássio está Suelen...- É comum acontecer quando escrevem meu nome. Mas o correto é Suelena Soares dos Santos. - Suelena, qual sua idade? - 42. O Nicolas tem 24. - Ele (Ricardo) tinha 54, como pode? A vida ... - Suelena, como foi a abordagem do seu Ricardo? - Difícil. Ele relutou muito. Não queria vir de jeito nenhum. Dizia que a gente ia judiar dele que nem dos outros. - Outros? - Os outros, o pessoal do SAMU de que ele não gostava.Tinha pavor da ambulância deles. Já o haviam atendido outra vez. A dona Ana nos ajudou na conversa com ele. Mas foi decisiva a participação da filha dela que chegou. Ela deu uma dura nele, um puxão de orelhas. Ele parecia da família. Ela apelidou ele de cascão,então ela falou sério que ele devia nos acompanhar sim porque era para o bem dele. Na vinda pro hospital ele me pediu Coca-Cola. Coca-Cola. Vê se pode! No hospital deram água pra ele, a enfermeira deu, água da torneira, ele reclamou que a água estava ruim. Ele era exigente, não era bobo não. O refrigerante... se eu soubesse que seria o último desejo dele... E eu não atendi.
Fala Nicolas: - A gente atende casos piores, bem mais complicados.Teve um dia lá no centro que atendemos dois casos de ataques de convulsão e outro de epilepsia, um perto do outro. Revirando a papelada na prancheta: seu Jurandir Francisco dos Santos (37 anos) e Valdemir Domingos (40 anos).

Suelena: - Seu Valdemir vomitava sangue.Os dois estavam muito debilitados, aqueles sim pensamos que iam morrer.
Nicolas: - Eles foram atendidos no OS da Barra Funda. Lá o atendimento ao morador de rua é mais humano.
Eu: - E eles escaparam?
Suelena: - Escaparam.

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76692-5856-460-2,00.html

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