sábado, agosto 23, 2008

O CATIVEIRO

Já faz alguns meses que tô fechado. Lugar apertado, úmido. Muito barulho e pouca luz.

O meu cativeiro.

Alguns dizem que eu valho ouro. Outros, pelos cantos, dizem que eu sou uma desgraça. Eu não fico chateado. Eu nem ligo. Pouca gente conversa mesmo comigo. Não os conheço, nunca os vi. Todos são estranhos.

Só tem uma mulher que não.

Ela me dá alimento. Algumas vezes, sem perceber, pega-se passando a mão sobre a minha cabeça, os meus pés, me fazendo carinho.

Tenho a impressão que é a única que gosta de mim.

Muitas pessoas passam aqui próximo, principalmente durante o dia. Ouço as crianças brincando na rua, as senhoras conversando enquanto fazem bolo e fofoca.

Algumas vezes ouço uns estampidos, uns pipocos. Primeiro o silêncio. Depois, choros. “Mais um fia, mais um”, diz uma senhora com a voz cansada. “É menos um, mainha. Menos um” responde a mulher.

E assim, seguimos.

Todo dia, de noitinha, aparece um homem na casa.

Na maior parte das vezes não diz nada. Percebo que tira a camisa suada, coloca em cima da cadeira. Pega um prato, garfo e faca e dá um beijo na mulher. Ela o serve.

Eu não o vejo, mas sinto que ele olha pra mim. De certa forma eu o respeito. Nunca me fez mal. Mas eu tenho um pouco de medo. Principalmente quando o escuto ao telefone, agitado, negociando valores. Não cansa de repetir: -“Eles tão brincando com a gente. Eles só podem estar brincando com a gente”.

Quase entro em pânico: e se resolverem dar um fim em mim?

Não. A mulher me protege.

Mas eu já estou cansado de ficar neste lugar fechado.

O negócio que eu quero fazer é arriscado. Sou pequeno, tô trancado e mesmo quando eles dormem eu ouço um latido rouco, grosso, vindo lá de fora. Deve ter um cachorrão enorme vigiando a casa.

Mas não tem jeito. Eu preciso tentar.

Eu preciso fugir.

Resolvi que seria esta noite.

Todos estão dormindo. Só se ouve o ronco do sono profundo.

Fazendo o mínimo barulho, resolvo escavar um buraco.

De repente a mulher se mexe. Eu paro. Respiro fundo.

Vi que ela só tinha virado de lado e resolvo continuar. Cravei minhas unhas naquela parede gelatinosa e comecei a afundar os meus dedinhos. É agora ou nunca. Mas aí, a mulher acordou. Pronto, percebeu o meu intento. Agora é tarde demais.

Eu tô fudido!

Ela deu um grito. O homem dormindo ao lado dela acordou. Ela continuou esperneando. A cama começou a ficar molhada. Havia um pouco de sangue.

Meu Deus!

O cara pulou da cama com tudo. Vestiu uma roupa e saiu. A mulher gemendo, me apertava. Estranho, parecia que ela queria me sufocar. Eu queria dizer “Pára, cê tá doida?” Mas não saía a minha fala. Comecei a me debater.

O homem da cama voltou com um estranho. Pegaram a mulher no colo e saíram. Eu fui junto, não tinha outra opção. Colocaram a gente num carro e saíram a milhão. O cara que dirigia era ligeiro. Nas curvas eu e a mulher éramos jogados de lado. Na lombadas, cada pulo. Até que paramos.

Aquele barulho, correria danada e, deitaram a mulher. Perguntaram como seria e ela falava: -“Normal. Vai ser normal” Eu tava começando a achar que ela era loquinha de pedra. Nada ali tava normal.

Foi então que eu senti.

Putz, já não bastava aquele lugar ser apertado, precisavam me espremer? Só escutava os cara falar: -“Respira, respira fundo. Agora força, força!”. A mulher gritava, tava fazendo uma força danada, e aquela parede gelatinosa diminuindo, me apertando. Caramba, pensei, vocês querem me matar aqui?

Até que eu vi a luz. Depois de tanto tempo no escuro, a luz. Ela quase me cegou, eu tive que fechar os olhos. Mas era uma luz. Parecia indicar uma porta, ela me chamava. Era por ali que eu tinha que sair.

Eu fui.

Coloquei primeira a cabeça. Já tinha ouvido alguém falar que se passa a cabeça todo o restante do corpo passa, então fui. Apertando, espremendo, os caras gritando, a mulher forçando, até que Uaaaaaaargh! Eu saí. Depois de tantos meses, eu saí! Não me contive. Depois de tanto aperto, tanta dor, eu finalmente estava livre. Podia esticar meus braços, pernas, não precisava mais me encolher. Eu estava livre. Até gritei:

Uéééééééééééééé. Uuuuuééééééééééééééé.

Uma mulher toda de branco me enrolou. Só fiquei com a cabeça exposta. Me virou em direção a outra mulher, que estava deitada.

Antes de me colocar em seus braços, eu olhei para o buraco da onde havia saído e pensava: caraca, como é que eu passei por ali?

A mulher estava com o rosto inchado. E chorava. Um choro contido, meio soluçando. Os lábios tremendo. Ela beijou o meu rosto. Foi aí que eu entendi uma palavra até então estranha para mim.

Mamãe.

Tinha um homem em pé do lado dela. Só ficava falando: -“Ele é lindo. Ele é lindo”. Reconheci a voz. Era a mesma do cara que negociava ao telefone. Papai. Gente fina o cara. Tá devendo uma grana danada pro pessoal que fez o meu berço, mas vive dizendo que não tem problema. O importante é a minha saúde. Do resto ele cuida. “Sô batalhador”, ele diz.

Eu acredito.

Um comentário:

Anônimo disse...

caramba, Rodrigo. Que lindo.

Beijo.