O PULSO AINDA PULSA
Na porta do bar, um copo segura um homem.
Na porta do bar, um copo segura um homem.
Na verdade, quem o visse assim parado na porta do Bar esquina da Rua Quarunás com a Rua 24 não veria o copo, não veria o homem. Apenas um corpo negro, escuro, sustentando farrapos, um cheiro forte de fumaça impregnando o azulejado e os olhos com restos esparsos do que foram barracos. Quem olhasse para ele naquela noite seja por minutos seja por horas veria sempre a mesma coisa: cinzas.
São nomes agora confusos que na sua mente atravessam, rasgam, neurônios perfuram: São Rafael, Lajeado, Vila do Nilo, Vila Santa Catarina, Vila Andrade, Naval, Pau Queimado; Zaki Narchi, Raimundo Pereira de Magalhães, Chácara Bela Vista, Jardim Aeroporto, Real Parque. Conhecia todos estes lugares. Alguns, pelas lideranças diretas. Outros, por acompanhar pelos jornais. E agora Tiquatira.
Por duas vezes entre dois dias: Tiquatira.
Não importa o quanto digam que foi acidente. Que um morador descuidado esqueceu um fogão ligado, que um gato deu curto e espalhou faíscas para todos os lados. Que fizeram fogueira no lugar errado. Seu João Benedito, véi de guerra, que sempre foi lider nato nesta selva de pedra sabe o quanto vale um terreno nesta terra. O quanto incomodava a ocupação de sua gente nela. Conhece bem a contabilidade, a velocidade com que supostos acidentes aumentam nas favelas conforme o interesse da especulação imobiliária cresce na cidade sem trégua.
Treze incêndios acidentais nos últimos dois anos? Parece brincadeira.
Quase ensaia o último trago quando da mente evasiva abruptamente é resgatado pelo baque-seco da garrafa de pinga que bate contra o teto da estufa de vidro que em seu interior traz resguardado ovos cozidos rosados e amarelados:
- Mais uma, seu Dito?
Estende o braço ao homem por trás do balcão e faz um gesto qualquer com a cabeça que o homem entende como um sim-e-não e deixa-o colocar mais uma dose antes de vê-lo voltar pra sua pequena cozinha.
Seu Dito continua em pé, na porta do bar. O copo o ajuda a se segurar.
Crianças correndo descalças no chão de barro levando a pipa aparecem em suas vistas, num piscar. E são seguidas de outras mães correndo com filhos nas mãos e no colo, gritando: - “Meu Deus, meu Deus!” – se ajoelhando e colocando a rezar. Homens que madrugavam no caminho pro trabalho com marmita feita antes do sol raiar, aparecem agora com baldes, panelas, mangueiras e latas velhas tentando o fogo apagar.
Tudo é em vão. A fogueira é insaciável. O incêndio incontrolável e a tudo devora muito rápido. O que se levou anos para construir, montar, trazer, pagar, em minutos vira fumaça, cinzas no ar.
Cama, fogão, geladeira; fotos, roupas, documentos, lembranças de vidas inteiras. Nada, nada. Quase nada fica para guardar. De sobra um terreno. Em ruínas cinza e preto, madeiras a estralar, e o rosto marcado por algo que lembra carvão nas centenas de adultos, jovens, velhos, mulheres, cachorros e crianças, que entre as buscas dos bombeiros tentam se deparar com algo útil ainda para levar.
“- Foi tudo” – alguém diz.
“- Tudo é muito, pra quem não tinha quase nada.” – outro responde
Se pudesse seu Dito sentava, na parede encostava, e se colocaria como criança a chorar.
Não pode. De longe um de seus filhos caminha, parece o avistar. Aproxima e se senta em um dos degraus da porta do bar. Após alguns minutos em silêncio, com uma voz mansa, como se não quisesse incomodar, olha pro pai e pergunta:
- Pai, meu caderno queimô. Como que amanhã eu vô estudá?
A pinga que antes descia e queimava na garganta de seu Dito novamente trava, pára. E antes que seu filho percebesse que ele na resposta vacilava, que seu olho mareava lhe devolve outra pergunta, selada:
- Pai já deixô alguma coisa faltar?
- Não, nunca.
- Então se aquieta. Amanhã é outro dia. Pai cedo madruga. Consegue seu caderno, dos seus irmãos, cês vão pra escola estudá.
As palavras do pequeno tiraram seu Dito do transe que estava até então. Abandonou o copo, sacou algumas moedas do bolso, pagou o que devia e estendeu para o seu filho sua mão. Surpreendendo o menino suspendeu-o com um puxão, colocou-o acima de sua cabeça com as pernas entre o seu pescoço gritando e trotando:
- Bôra? Então, segura, peão!
Sai galopando como se estivesse em um campão. Um vazio nos bolsos, o medo no estômago, mas a coragem recomeça a brotar no coração. Na mente, algumas idéias. Para improvisar trabalho, roupas, alimentação. Resolver os problemas da escola, saúde, documentação. Tudo precisaria de muita solidariedade, luta e cooperação. Para sua família, amigos e vizinhos era o que não faltava. Não. E novos. Sempre antigos recentemente novos planos de Ocupação. Afinal, não havia outra solução. O abandono dos Governos, a insensibilidade aos apelos. Os seus direitos, garantidos em Constituição. Não. Os seus não podiam e não iriam ficar na rua, ao léu. Jogados no chão. Não enquanto forças tivesse. Não enquanto pudesse. Se fosse cair, que estivesse em pé. Nunca ajoelhado, de cabeça baixa ou estendendo como um pedinte, suas mãos.
Na porta do bar apenas o copo. Sob ele, um balcão. Memórias de um passado que agora não seguram mais Seu João. Aliás, nem nada. Nem ninguém. (por Rodrigo Ciríaco)
4 comentários:
Contos como esse trás de volta nosso pulsar, muitas vezes adormercido, da vida nua como ela é.
Como um grito acorda nossas sensações de percepção que ficam topadas pela nossa propria sobrevivencia e dores, esquecendo de olhar o entorno.
obrigada
Adorei o conto, Rodrigo. Muito tocante, muito sensível. Me lembrou os milhares de Josés que perguntam todos os dias a si mesmos: "E agora?"
Um abraço.
Marília
Olá, meninas. Valeu pela força. Abracios.
Mandou muito bem Rodrigo, parábens! Um dia ainda vão entender que por mais que se movam contra nós... o pulso, vai continuar pulsando e somos desobedientes, nunca pararemos.
Muito obrigado pelo texto, um puta trabalho.
Abraços
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