Era como se folhas brancas fossem espalhadas por todo o espaço: no chão, no teto, sobre as árvores, as ruas, os céus. Sobre todos os objetos. O Nada oprimindo as cores. O Nada dominando tudo. As poucas cores que ainda havia era sobre as pessoas, sobre as roupas que elas usavam, para que não esquecessem que nem sempre foi daquela forma. Um dia o mundo fora colorido.
Por não ter mais chão, a sensação era de que andar era um eterno flutuar. Ou uma eterna queda, na qual as pessoas caíam sempre lado a lado, ao mesmo tempo. Ninguém mais sentia fome, frio; as pessoas não sentiam cansaço, não precisavam fechar os olhos para dormir. Ninguém mais morria, não havia desigualdade entre as pessoas. Ninguém precisava sofrer.
No principio, apesar da dificuldade de adaptação, as pessoas gostaram do Nada. Bastava sentar e conversar, botar os assuntos em dia. Contar histórias. E assim fizeram: ficaram meses dialogando, filosofando, trazendo para a boca histórias puxadas das memórias, das lembranças em cores que ficavam do mundo que haviam vivido. E foi isso que passou a incomodar. Pois o problema de não se passar mais fome é também não ter o prazer de comer. O problema de não mais sentir frio é não ter a sensação de calor, mesmo entre os corpos. O problema de não mais morrer é descobrir que, viver eternamente, sem dificuldades, é um viver sem sentido.
Algumas pessoas quiseram ficar loucas com a brancura do Nada. Não puderam. Esqueceram que não mais podiam ficar doentes. Fingiram. Um fingimento artificial, ninguém acreditava em suas dores, apesar de apenas elas serem reais.
Alguém lembrou de uma história. Quem em tempos remotos, nos momentos de maiores dificuldades, organizava-se sempre um grupo para caminhar, atravessar morros, desfiladeiros, os mistérios das estradas para a busca de uma solução, um antídoto. Este seria o pote das cores, envolta na caixa negra dos mistérios. Ele estaria em algum lugar entre a brancura do Nada. Bastasse que alguns voluntários saíssem em sua busca, sabendo que poderiam se perder nessa caminhada sem fim.
Entre bilhões de pessoas, milhares se candidataram. Um número pequeno, se comparado ao número de pessoas existentes e insatisfeitas com aquela situação. Mas nenhum número é desprezível. O grupo se organizou e partiu. Andando. Sem direção, sem caminho certo. Andar para a direita, para a esquerda, para frente ou para trás, não importava. De todos os lados, apenas o Nada havia.
Como não dormiam, não sentiam fome, não faziam outra coisa além de viver, perderam a noção do tempo. Em nossa época, não se saberia dizer por quantas andaram: dias, meses, anos, décadas? A única certeza é que, durante o caminho, muitos ficaram para trás. Desistiram. Optaram por nada fazer, no Nada viver, ao invés de prosseguir numa caminhada que não sabia que frutos daria. Não sabia se daria certo. Preferiram ficar pelo caminho a tentar, e o Nada conseguir.
Um grupo de dez seguiu. E seguiram tantos passos juntos que já haviam se tornado mais do que amigos. Haviam se tornado íntimos. Nenhum segredo mais havia para ser compartilhado. Eram mais do que irmãos, eram uma pessoa só. E todos confiavam em todos, sentiam-se fortes por causa disso.
Até o dia em que viram um ponto escuro do outro lado da vista. E como não cansassem mais, eles correram. Correram, correram, até que o ponto foi mudando de forma, foi crescendo. Eles estavam se aproximando, chegando mais perto. O ponto deixou de ser um ponto escuro, começou a criar forma. Cores alaranjadas, cores amarelas, não lembravam ao certo. O ponto ganhara contornos: eram tábuas, de madeira, amarradas uma as outras com uma corda. Na verdade, o que eles viam era uma ponte. Mas estranho: do outro havia... O Nada.
A frustração tomou conta do grupo. Caminharam por tanto tempo para encontrar uma ponte que liga o Nada ao lugar nenhum? Que perda de tempo. Para quê? Deveriam ter ficado no mesmo lugar, um deles disse. Pelo menos estariam com o grupo maior, estariam seguros. Seguros do quê, outro questionou. O que pode nos atormentar aqui a não ser o Nada, a não ser os nossos próprios medos? Uma pessoa do grupo disse que eles deveriam atravessar a ponte, que aquilo deveria ter um significado. As pessoas o olharam, indiferentes. O ignoraram totalmente. Deram as costas e voltaram. Para o Nada. Ele continuou gritando, acreditando: -“Vamos atravessar, voltem.” Ninguém deu ouvidos, as pessoas se foram.
Ele ficou. Olhando fixamente para a ponte. E aconteceu: do outro lado, um imenso jardim surgiu. Como num passe de mágica, alguém pintando um quadro colorido. Com muitas folhas, árvores, pássaros. Ele podia ouvir o cantar dos animais, ele podia ver que, por acreditar, do outro lado o Nada havia desaparecido. Então ele soube: para o Nada sumir, bastava que um, que ele acreditasse e atravessasse a ponte, e tudo voltaria a ser como antes, Tudo mudaria outra vez.
Mas ele não atravessou. Sentou em frente a ponte e ficou olhando as maravilhas do mundo. Era apenas uma ponte, eram apenas alguns passos para Tudo se transformar. Mas, ele ficou. Teve a certeza que uma trajetória como esta não se faz sozinho.
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