Eu vi. Eu juro que eu vi!
Eu sei que eu tô bêbado, mas eu vi.
Eram dois moleques, não passavam dos quinze, dezesseis anos.
Tavam com toca, jaquetona, calça larga.
Tocaram a campainha da casa da dona Cida.
O filho dela mais novo, o Japonês, abriu.
Eles sacaram uma arma que parecia mais um trabuco, de tão grande.
Desse tamanho, ó. Toda preta.
Pegaram e mostraram pro Japonês. Ele arregalou o zóio e eles entraram.
É verdade, eu vi. Eu juro que eu vi!
***
Quinze minutos depois, cinco viaturas da polícia chegavam ao local.
Passaram ligeiras pela Dona Maria, que voltava da feira.
Ela fez o sinal da cruz e continuou. Sabia que tinha desgraça a vista.
Era comum. Era rotina.
Só não pensou que desta vez estava mais próximo do que gostaria.
Na porta da padaria, vizinhos amparavam o Seu Ari.
Segurava um copo, agora com água e açúcar.
Repetia a história pela terceira vez.
Quando viu dona Maria, saiu todo afobado em direção a ela. Perguntou:
- Cadê, cadê seus filhos?
Márcio, Marcos e Mauro. Treze, doze e onze anos. Escadinha.
Adoravam brincar com o filho da dona Cida.
O coração da dona Maria gelou.
***
Antes que os policiais fizessem o cerco, dona Maria entrou correndo em sua casa.
Morava sozinha com os três filhos. Vizinha de muro da dona Cida.
Passou por todo corredor que ia da entrada ao fundo. Chegou à cozinha.
Dona Maria pegou uma cadeira e encostou ao muro que dividia com a vizinha.
Subiu, esticou a cabeça, olhou.
Ninguém a vista.
Voltou para a cozinha, pegou uma faca grande, de churrasco, bem afiada.
Decidiu pular o muro, invadir a casa da amiga.
Ela não sabia bem o que ia fazer. Não tinha um plano.
Só não podia ficar ali do lado, esperando.
Seus filhos lá dentro em perigo.
Colocou a faca na boca. Apoiou as mãos no muro e fez força.
Os braços tremiam. Ela ofegava.
A muito custo subiu o tronco, apoiou o quadril.
Foi pra lá, foi pra cá, quase desequilibrou e caiu.
Respirou fundo.
Passou uma perna. Depois a outra.
Pulou.
Tum!
Nas pontas dos pés, chegou à porta dos fundos da vizinha.
Estava aberta. Também dava acesso à cozinha.
Dona Maria entrou.
Havia um som alto, um rap tocando na sala.
“Quem disse que na periferia não dá pra curtir?”
Dona Maria ignorou.
Olhou pela janela e viu a movimentação dos policiais.
Por cima, por baixo, estavam cercando a casa.
Ficou apavorada.
Dona Maria não confiava muito em policiais.
E se invadissem, o que ia acontecer?
E se eles se confundissem e atirassem nos seus filhos?
Não, ela mesma ia resolver.
Continuou.
A cada cômodo que cruzava, olhos atentos.
A faca de churrasco na mão.
O coração entalado na garganta.
O suor escorrendo pelo pescoço.
As pernas bambeando.
Entrou no corredor que dava acesso aos quartos.
Havia um banheiro com a porta aberta.
A luz acesa.
Olhou de canto, bem devagar.
Não tinha ninguém.
Passou pelo quarto de dona Cida e Seu Fujimoto.
Dona Cida estava no trabalho.
Seu Fujimoto também.
A única movimentação parecia que vinha do quarto do menino.
Caio, O Japonês. Treze anos.
Filho de dona Cida.
Como seus filhos, fã de videogame.
Dona Maria foi se aproximando do quarto.
A porta entreaberta.
As luzes apagadas.
Apenas a televisão ligada.
Não dava pra ver o que acontecia lá dentro.
Também não dava pra ouvir.
O som alto na sala.
O silêncio lá dentro.
Olhou para baixo. Certificou-se da faca nas mãos. Apertou-a.
Resolveu esperar. Só um pouco.
Até a hora que ouviu:
- Vai, Mano. Só falta esse. Dá logo um tiro no meio da cara e pronto!
O menino levantou a arma. Mirou bem no meio da testa.
Pow!
- Nããããããããããããooo.
Dona Maria entrou com tudo no quarto. A faca em punho.
Era tarde demais.
Na TV, um monstro caído. Esguichava sangue.
Em frente dela, seis adolescentes. Olhos arregalados.
Controles, fitas, a arma e um videogame jogados no chão.
Sem entender aquela cena.
Dona Maria na porta, parada.
Segurando uma faca.
A mão sobre a testa.
E dando risada.
Na tela da TV, uma frase piscava:
“Congratulations. You win!”
Os meninos tinham vencido.
O “Combate Mortal” havia chegado ao fim.
Eu sei que eu tô bêbado, mas eu vi.
Eram dois moleques, não passavam dos quinze, dezesseis anos.
Tavam com toca, jaquetona, calça larga.
Tocaram a campainha da casa da dona Cida.
O filho dela mais novo, o Japonês, abriu.
Eles sacaram uma arma que parecia mais um trabuco, de tão grande.
Desse tamanho, ó. Toda preta.
Pegaram e mostraram pro Japonês. Ele arregalou o zóio e eles entraram.
É verdade, eu vi. Eu juro que eu vi!
***
Quinze minutos depois, cinco viaturas da polícia chegavam ao local.
Passaram ligeiras pela Dona Maria, que voltava da feira.
Ela fez o sinal da cruz e continuou. Sabia que tinha desgraça a vista.
Era comum. Era rotina.
Só não pensou que desta vez estava mais próximo do que gostaria.
Na porta da padaria, vizinhos amparavam o Seu Ari.
Segurava um copo, agora com água e açúcar.
Repetia a história pela terceira vez.
Quando viu dona Maria, saiu todo afobado em direção a ela. Perguntou:
- Cadê, cadê seus filhos?
Márcio, Marcos e Mauro. Treze, doze e onze anos. Escadinha.
Adoravam brincar com o filho da dona Cida.
O coração da dona Maria gelou.
***
Antes que os policiais fizessem o cerco, dona Maria entrou correndo em sua casa.
Morava sozinha com os três filhos. Vizinha de muro da dona Cida.
Passou por todo corredor que ia da entrada ao fundo. Chegou à cozinha.
Dona Maria pegou uma cadeira e encostou ao muro que dividia com a vizinha.
Subiu, esticou a cabeça, olhou.
Ninguém a vista.
Voltou para a cozinha, pegou uma faca grande, de churrasco, bem afiada.
Decidiu pular o muro, invadir a casa da amiga.
Ela não sabia bem o que ia fazer. Não tinha um plano.
Só não podia ficar ali do lado, esperando.
Seus filhos lá dentro em perigo.
Colocou a faca na boca. Apoiou as mãos no muro e fez força.
Os braços tremiam. Ela ofegava.
A muito custo subiu o tronco, apoiou o quadril.
Foi pra lá, foi pra cá, quase desequilibrou e caiu.
Respirou fundo.
Passou uma perna. Depois a outra.
Pulou.
Tum!
Nas pontas dos pés, chegou à porta dos fundos da vizinha.
Estava aberta. Também dava acesso à cozinha.
Dona Maria entrou.
Havia um som alto, um rap tocando na sala.
“Quem disse que na periferia não dá pra curtir?”
Dona Maria ignorou.
Olhou pela janela e viu a movimentação dos policiais.
Por cima, por baixo, estavam cercando a casa.
Ficou apavorada.
Dona Maria não confiava muito em policiais.
E se invadissem, o que ia acontecer?
E se eles se confundissem e atirassem nos seus filhos?
Não, ela mesma ia resolver.
Continuou.
A cada cômodo que cruzava, olhos atentos.
A faca de churrasco na mão.
O coração entalado na garganta.
O suor escorrendo pelo pescoço.
As pernas bambeando.
Entrou no corredor que dava acesso aos quartos.
Havia um banheiro com a porta aberta.
A luz acesa.
Olhou de canto, bem devagar.
Não tinha ninguém.
Passou pelo quarto de dona Cida e Seu Fujimoto.
Dona Cida estava no trabalho.
Seu Fujimoto também.
A única movimentação parecia que vinha do quarto do menino.
Caio, O Japonês. Treze anos.
Filho de dona Cida.
Como seus filhos, fã de videogame.
Dona Maria foi se aproximando do quarto.
A porta entreaberta.
As luzes apagadas.
Apenas a televisão ligada.
Não dava pra ver o que acontecia lá dentro.
Também não dava pra ouvir.
O som alto na sala.
O silêncio lá dentro.
Olhou para baixo. Certificou-se da faca nas mãos. Apertou-a.
Resolveu esperar. Só um pouco.
Até a hora que ouviu:
- Vai, Mano. Só falta esse. Dá logo um tiro no meio da cara e pronto!
O menino levantou a arma. Mirou bem no meio da testa.
Pow!
- Nããããããããããããooo.
Dona Maria entrou com tudo no quarto. A faca em punho.
Era tarde demais.
Na TV, um monstro caído. Esguichava sangue.
Em frente dela, seis adolescentes. Olhos arregalados.
Controles, fitas, a arma e um videogame jogados no chão.
Sem entender aquela cena.
Dona Maria na porta, parada.
Segurando uma faca.
A mão sobre a testa.
E dando risada.
Na tela da TV, uma frase piscava:
“Congratulations. You win!”
Os meninos tinham vencido.
O “Combate Mortal” havia chegado ao fim.
conto de Rodrigo Ciríaco, publicado no livro Um Segredo no Céu da Boca, Edições Toró, outubro de 2008
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