DEBATE ABERTO
Direito de Sonhar
O futuro dos jovens está ameaçado. Em 22 anos, foram 100 mil jovens pobres mortos. Os números deveriam ser suficientes para uma mobilização nacional, uma marcha pelo direito do jovem ter a perspectiva do amanhã.
Luciana Burlamaqui
O futuro dos jovens no Brasil está ameaçado. Pesquisas divulgadas na última semana pela revista Carta Capital revelam números que comprovam a falta de perspectiva de vida da juventude pobre brasileira. Uma delas, “Homicídios de Crianças e Jovens no Brasil 1980-1992”, lançada em novembro passado, pelo Núcleo de Estudos de Violência (NEV) da Universidade de São Paulo, revelou que as maiores vítimas de homicídio concentram-se entre 15 e 19 anos (87,6%) e vêm de regiões onde faltam os direitos básicos sociais e econômicos. Foram quase 100 mil jovens pobres mortos, em 22 anos. Os números já deveriam ser suficientes para uma mobilização nacional, uma marcha pelo direito à vida, pelo direito do jovem pobre ter a perspectiva de um amanhã. A juventude brasileira que está excluída da sociedade do consumo e vive à margem da justiça social quer, como qualquer outra juventude do mundo, planejar um futuro e poder sonhar com ele, livremente.
A adolescente paulista Maria Nilda da Motta, Dinha, chamou a atenção de jovens de várias partes do mundo por lutar por esses direitos. A conheci quando gravava um documentário para a BBC World, sobre a desigualdade social no Brasil, a partir do olhar de jovens do movimento hip hop. Dinha vivia em um ambiente completamente desfigurado de inspiração para sonhar. Sua determinação e luta chamaram a atenção de jovens de várias partes do mundo quando o documentário foi ao ar. As cartas que chegaram a ela e, vieram até do Nepal, sustentaram que sonhar é um sentimento universal de qualquer jovem do planeta.
Dinha cresceu numa favela, no Parque Bristol, zona sul de São Paulo. Uma escada de madeira estreita improvisada a levava até seu pequeno quarto. Era lá que passava preciosas horas do seu dia escrevendo. Da janela do quarto via casebres enfileirados e sobrepostos. Um córrego a céu aberto contornava sua humilde casa, ainda inacabada. Ruas de terra, poeira, cheiro de tijolo, lixo e esgoto eram seu entorno. Olhar para o céu a inspirava a sair daquela realidade e voltar-se para seu rico mundo interior. Nele havia horizontes, montanhas, cores que através de sua imaginação a salvaram e transformaram seus desejos em versos, seus sonhos em lindas poesias. “Jogaram fora a linha do horizonte. E eu fiz com ela um ninho que repousa em minhas mãos. Senhor, olha os prédios horizontais - o esparadrapo sujo que puseram – e tende piedade de nós. (...) sociedade infecunda – vide favela – sou dela.”
O sonho de Dinha era ser escritora. Obstinada criou um grupo de estudo no bairro e conseguiu furar o bloqueio do capital, que privilegia estudantes das caríssimas escolas particulares e tornam-se maioria nas melhores universidades públicas do país. Entrou na estatística de 8% da população entre 18 a 24 anos que têm acesso ao ensino superior. Os dados estão no “Atlas da Exclusão Social”, resultado de uma pesquisa coordenada pelo professor de economia da UNICAMP, Márcio Pochmann. O estudo, além de confirmar o monopólio da elite na educação, revela que, de cada 10 crianças que iniciam a primeira série do Ensino Fundamental, apenas uma chega à universidade.
Dinha conseguiu contrariar a previsão do jovem que vem das frágeis escolas públicas do país e não consegue estudar numa universidade pública. Entrou em uma das mais prestigiadas, a USP, e começou a estudar Letras. Talvez o poder que a literatura tem de tocar a alma das pessoas e tornar real o que é invisível aos olhos tenha ajudado Dinha a agarrar-se nos seus sonhos mais profundos e perseguir com força e coragem o que havia traçado para seu futuro.
Mas a história de Dinha é uma exceção. É difícil enxergar além do barraco e do esgoto a céu aberto, na porta da frente de casa, e sair da sensação de engessamento e imobilidade para avançar na busca dos direitos básicos que não são garantidos com dignidade pelo Estado e pela sociedade brasileira. São 4 milhões de jovens no Brasil, segundo o IBGE, que não trabalham, não estudam e, ainda pior, nem sequer procuram trabalho. Tateiam, no escuro, um caminho para dar o próximo passo, sem saber para onde vão.
O jovem sem perspectiva torna-se um jovem sem horizontes, sem o direito de sonhar. A dimensão do tempo para este jovem sem sonhos e horizonte é completamente diferente da dimensão do tempo para aquele que tem oportunidades.
24 horas na vida de quem acredita em um amanhã pode significar um dia a mais para lutar por suas metas traçadas. Já na vida do outro, onde só existe o hoje, as mesmas horas podem representar o tempo que precisa para satisfazer seus desejos imediatos. Um dia na vida dele, para planejar algo, executar e vencer, aliado a isso o gosto pela adrenalina da fase da juventude, da sensação do sucesso de um roubo, do dinheiro rápido no bolso e do prazer imediato da compra de uma roupa “da hora”, por exemplo, podem valer pelo risco de perder sua vida. A dimensão do tempo muda.
Trinta dias de glória para um menino pobre podem ter a mesma dimensão de trinta anos na vida de outro que tem oportunidades. O que para o rico pode significar o risco de perder tudo, para o pobre não arriscar pode significar perder tudo. Os jovens da periferia não carregam o peso de nobres sobrenomes, da reputação social, da possibilidade do intercâmbio no exterior. Muitos preferem correr o risco de morrer cedo, vencendo no hoje, do que morrer tarde com seus desejos frustrados e reprimidos. Esse olhar diferente sobre a mesma realidade também aparece no documentário “De Volta à Vida”, realizado por seis jovens que passaram pela Febem de São Paulo. Com a câmera na mão, mostram seus simples cotidianos: onde moram, o que comem, como brincam, o encontro com os parceiros que ainda estão no crime. Um diálogo entre o garoto, com a câmera no ombro, e o outro, com a arma na mão, marca a nítida diferença entre aquele que tem um amanhã e o outro cujo olhar só alcança o hoje.
O encapuzado e armado revela: “escolhi roubar, foi o lado mais fácil e mais rápido de ganhar dinheiro”. “Olha aí” – mostra várias notas de cinqüenta. “Acabei de voltar de um assalto. Tenho dinheiro no bolso para sustentar minha “véia”, gastar um pouquinho, ir à praia, pra gandaia e catar umas mina”. Já o menino que segura a câmera conta que passou pela Febem refletiu, e agora, quando pensa em sair para roubar, avalia que poderá não voltar amanhã. O amanhã dele voltou a existir. Seus sonhos também. Quer ser cinegrafista e documentarista. Suas reflexões sobre o que teria a perder se voltasse à vida do crime só vieram depois que saiu da prisão e começou a participar de oficinas de vídeo realizadas pelo Projeto Quixote - ONG que trabalha com jovens egressos da Febem.
Hoje, o garoto trabalha gravando a experiência de outros projetos que atendem a crianças em situação de risco, no centro de São Paulo. A valiosa documentação, além de servir de base para estudo, deverá virar outro filme. O incentivo para investir na carreira veio com o reconhecimento de seu documentário dentro e fora do Brasil.
O vídeo foi apresentado, recentemente, em um congresso sobre Saúde Mental na Universidade de Calgary, no Canadá. Junto com o grupo de jovens que participou do trabalho, o garoto já foi duas vezes ao país para compartilhar sua experiência de enfrentar o mundo, depois de passar pela prisão. “De Volta à Vida” também foi exibido no Festival de Cine Vídeo de Gramado deste ano.
Mas a realidade destes garotos, assim como a de Dinha, também é uma exceção. O número de projetos sociais públicos e não-governamentais não é suficiente para atender à demanda dos jovens brasileiros que perderam seus sonhos e a perspectiva do amanhã. Os desafios são ainda maiores pelo país possuir uma das piores distribuições de renda do mundo.
Em meio a tantas adversidades, Dinha conseguiu lançar sementes para seu futuro. Resolvi procurá-la para saber como estava a menina aguerrida e sonhadora. Há 7 anos não nos víamos. Hoje estaria com 27 anos. Teria conseguido terminar o curso de Letras? Segundo a pesquisa do professor Pochmann, a maioria dos jovens abandona os estudos para trabalhar. Um destino muito provável para ela, já que além de não possuir uma renda fixa, precisava cuidar de sua filha Katrine, na época com três anos.
Consegui localizá-la por telefone, num domingo, na hora do almoço. Enquanto ela lavava a louça me contava que não só concluiu o curso de Letras como agora estudava a cultura, a religião e a literatura da África e do Brasil, em um curso de pós-graduação na Universidade Castelo Branco, no Rio de Janeiro. Ganhou uma bolsa, através de uma ex-professora da USP e, uma vez por mês, viajava para lá. Junto com a filha dividia a nova casa (ainda na mesma rua de quando a visitei) com Dalila, Bambam, Maria Chiquinha e De Sempre, seus quatro gatos. Contava que sua próxima batalha era fazer mestrado na USP, sobre a Literatura da África e do Brasil.
Além da conquista nos estudos, Dinha tornou-se educadora de rua de uma organização não-governamental. Complementa sua renda dando aulas de português para estrangeiros. Não abandonou sua veia militante. Ensina literatura para a comunidade do bairro, participa de um núcleo cultural, ajudou a fundar a biblioteca comunitária “Livro Pra Quê Te Quero”, e não perde as noites de sarau, às quartas-feiras, com escritores da periferia.
A grande novidade é que seus poemas viraram livro: “De Passagem, Mas Não A Passeio”. O sonho de ser escritora tornava-se real. Publicado este ano, a 1ª edição de 500 exemplares já está esgotada. O livro é confeccionado em papel reciclado e a impressão com letras manuscritas. A publicação teve o apoio da ONG Ação Educativa e foi editada pelo selo independente “Edições Toró”.
No último parágrafo do livro é resumida a história da brava menina: “Dinha é educadora, mediadora de leitura, fanzineira, mãe de Katrine e representante da literatura produzida nas periferias do Brasil afora”.
A esta descrição, acrescentaria que as poesias de Dinha carregam o grito de tantos jovens no Brasil que não aceitam ser emparedados pelas amarras do sistema e querem garantir o direito de sonhar, de olhar para frente, encontrar horizontes e o infinito.
Em “Os Cegos” a poeta reverbera esta angústia e este desejo:
“Era preciso um poema, mas é que sem horizontes quem consegue ver além dessa moça da esquina?
O ônibus segue seu curso: é parte de rabo de luz, gasolina e fumaça: constelação de estrelas melancólicas e mecânicas. Cidade.
Nada aqui tem harmonia, e se o caos não tem seu ritmo, é outra vez a falta que faz olhar o longe.
Avenida 9 de Julho, saindo da Estados Unidos. Primeiro ponto: desce um homem. Segundo ponto: desce outro.
Do outro lado da rua há carros na contramão. Estou caminhando sozinha, ou já me cegaram também?
Também busco horizontes. Um lugar que de tão longe, já nem existe mais.”
Luciana Burlamaqui é jornalista, documentarista e produtora da Zora Mídia, voltada para produção de documentários e longa-metragens focados em temáticas humanistas.
Extraído do Sítio da Agência Carta Maior:
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3444
Um comentário:
Hi,
I was in touch with Dinha for some years. I have been trying to find her whereabouts for the past one year. Her hotmail and yahoo mails don't seem to work anymore.
If you have her email could you please send it over to deep_spring_2001@hotmail.com?
Thank you...
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