sexta-feira, janeiro 12, 2007

Timelo(s)

Boca do Leão. Ao redor da pequena fogueira-churrasqueira improvisada, formada por tijolos de barro e alimentada por folhas de jornal, madeira e qualquer outra coisa que servisse de combustão, jogávamos conversa fora e batatas ardentes adentro, até as primeiras horas da madrugada.
O papo podia ser qualquer coisa. Éramos adolescentes, entre 12 e 17 anos e assunto não faltava. De mulheres a carros, pipas e futebol. Brigas ou bicicletas.
- Bater em bêbado ou mendigo não vale! Lembrava o Japa, sempre bom de briga. “É como meu pai sempre fala, cê qué se homi tem que sair na mão. Nada de pau, ferro ou puxa cabelo. Isso é coisa de menina. Agora, bater em bêbado ou mendigo também não vale.” E era quase como uma regra. Volta e meia no bar que tinha lá próximo, se tinha alguém “bom” que se atravesse a bater em bêbado, alguém interfiria.
Mas eu lembro de já ter visto meu irmão dar uns peteleco num cara chapado que bebeu e não quis pagar a conta no bar lá do meu pai!
Lembro também do Timelo. Timelo foi uma figura, que se não fosse real poderia ser lendária, lá das quebradas da Vila Rui Barbosa, perto do Tiquatira, Zona Leste.
O cara era um andarilho. Um mendigo, como insistimos em dizer hoje em dia. Não sabia onde vivia, não sabia onde dormia. Nunca o vi pedindo nada, mas as pessoas davam. Roupa, sapato, comida. Sempre puxava um saco de papelão, uma sacola de plástico. O cabelo um pouco cumprido, sempre desgrenhado. Suuuujo! O coitado pouco tomava banho. Também pudera. Ninguém conhecia sua família, sua história, sua casa. Acho que não tinha uma.
Era bode expiatório da Vila. Volta e meia alguém estava de saco cheio, cadê o Timelo? Era zuado! E não falava nada. Não respondia, não devolvia. Nunca. A nada.
Um dia eu e o Idalho, moleques que éramos, resolvemos aprontar. Dias antes já tínhamos colocado um morteiro numa caixa de correio e... Nem deu tempo de ouvir o barulho do estouro. Saímos correndo! Porém, dentro do nosso plano infalível havíamos nos esquecido de pensar para onde correr, onde se esconder? Demoramos tanto que o dono da casa nos achou. Soube de supetão que fora nós, os artistas de tão estimada obra, pela nossa cara de apavorado. Nos levou de volta até a sua casa, para mostrar o que acontecera: um belo buraco! A caixa de correio foi parar em baixo do seu Jipe. Deu uma puta duma bronca, mas não chamou nossos pais, nem a polícia – freqüentemente alguns vizinhos diziam que iam nos mandar pra Febem, sempre que jogávamos bola na rua e esta invadia as suas casas ou batia nos carros.
Neste dia, o alvo era o Timelo. Estava perto de um terreno baldio, próximo a nossa casa. Ficamos chamando ele, zuando, xingando. Nada! Nem um olhar. Estávamos tomando um sorvete e, entre uma lambida e outra: - Oh Timelo, oh fedido, olha pra cá. Vai sujeira. Raspa de bosta de cavalo. Oh Sarna!
Éramos cruéis. Crianças, infantis, inconseqüentes e... cruéis.
Até que o Idalho teve uma idéia! Perto de nós tinha uma pilha. Pilha de rádio, controle, jogada no chão. Resolveu jogar no Timelo, pra chamar a sua atenção. O alvo foi certeiro: acertou-lhe a cabeça!
Pela primeira vez em minha vida eu VI o Timelo! Sabe, olhar de verdade. Ele ameaçava esboçar uma reação. Olhou pra nós com um olhar fulminante. Nos assustou! De repente, resolvera vir em nossa direção. Começou a correr...
Eu e Idalho não acreditávamos naquela cena. Não sabia o que era algo surreal mas, era aquilo. Aquilo não estava acontecendo.
Depois de um tranco, eu e ele começamos a correr. Correr, correr, correr. Atravessamos a Rua Paulo Primo Bertoco em menos de 10 segundos, em 04 subimos a Boca do Leão e em 08 cruzamos a Rua Haia inteira, completando quase que a volta no quarteirão. Chegáramos a Rua Quárunas, rua que eu morava e era quase que de esquina a casa do Idalho. Olhares atentos. Procurávamos o Timelo. Olhávamos pra trás, pros lados. Até pra cima! – ora, podia estar vindo pelo telhado! Nada. Estávamos aliviados.
De repente, lembramos do sorvete. Era uma super bola, desses sorvetes de máquinas (aquelas antigas) sabor morango, com uma casquinha maravilhosa. E, cadê o sorvete? Na corrida, sobrara só a casca. E quebrada! De tão apavorados que estávamos, o sorvete caiu ou escorreu pelas nossas mãos, pois estavam meladas. Não sobrara nada. Só a casca quebrada.
Mas, havíamos sobrevivido.
Poxa, isso já faz um catorze anos...
Hoje a Boca do Leão continua lá. Na planta da SubPenha diz que é uma praça. Na verdade é um morro, todo cheio de mato, com algumas casas em volta. A molecada se diverte soltando pipa ou descendo o morro, com a bunda sobre a madeira lisa que hora e outra pode ser encontrada por lá. O Timelo nunca mais vi!
Mas ainda encontro muitos outros “Timelos”, espalhados por aí. Não é difícil encontrar. Em São Paulo, uma pesquisa comprova que tem mais ou menos 12.000 pessoas em situação de rua, só na cidade.
As brincadeiras, verdadeiras maldades contra estas pessoas continuam. E não são só feitas mais por crianças. Há muita maldade no coração das pessoas, e muita gente ignorando o que está acontecendo.
Ontem mesmo mais uma pessoa em situação de rua foi queimada na cidade. Em Itaim Paulista, Zona Leste. Minha Zona Leste, tão querida, que sempre foi berço de muitos migrantes – incluindo meus pais – que chegavam na capital de São Paulo. E o pior é que não é só lá não. De Leste à Oeste, de Norte a Sul, no Centro, a violência contra a população de rua não pára. Eu sei, eu sei, mas violência acontece em qualquer lugar! Concordo. A violência urbana é um dos grandes problemas das grandes cidades. Mas tem algo novo na parada. Tão matando pessoas em situação de rua adoidado.
Ora aparece um queimado, ora outro que foi espancado. A cabeça parece ser o alvo preferido, seja para uma tijolada ou uma porrada, com pau ou cano de ferro. Morador de rua sempre morreu, envenenado ou de frio principalmente mas, desde a Chacina de Agosto de 2004, a Mídia – finalmente, bom ou não – está mostrando mais estas mortes. E como ela está se tornando cada vez mais constante, com métodos ardilosos e cruéis. As pessoas são descartáveis! E, já não bastava o sofrimento por sua condição, ignorada pelo Poder Público e por grande parte da sociedade agora estão morrendo... Eu iria dizer violentamente morrendo mas, a morte por veneno ou frio também é violenta. Enfim, estão morrendo com uma maior agressividade. E a tristeza de tudo isso é que sim, poderia ser evitado. Sim, estas mortes poderiam ser interrompidas. Como o sofrimento de meu povo periférico e tantas mães que choram por seus filhos e filhas poderiam ser interrompidas.
Há quem chore pelas pessoas em situação de Rua?
Infelizmente, duvido.
Hoje fico triste pelas maldades que fiz ao Timelo. Mas, fico mais triste ainda por saber que as “brincadeiras” de criança agora pioraram e são feitas por adultos, pessoas más que insistem em cometer maldades e não assumir responsabilidades. E não crescer. Humanamente crescer.


Rodrigo Ciríaco

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