sexta-feira, janeiro 11, 2008

NARCISO E SEU ESPELHO

Meu caminho até ele não foram as conchas, as pedras, mas as tampinhas de garrafa da praia do Pina. Há milhares delas, espalhada por toda a praia, desde Boa Viagem. No primeiro dia que chegamos aqui, em Recife, encontramos a areia da praia bem suja. Obra da virada, eu e Tânia pensamos. Não era. No primeiro dia que encostamos numa barraca e pedimos cerveja, a tampa da garrafa foi jogada diretamente na areia. E ali ficou.

Pousamos por volta das 09hs. A maré estava muito baixa. Os arrecifes de corais, cobertos nos dias anteriores pela água salgada, agora estava visível. Porções de água próximo formavam uma bela paisagens de águas cristalinas e piscinas naturais. E tampinhas. Várias delas, enferrujadas pela ação do mar derrotavam a orla da praia. Aquilo era incômodo, além de perigoso. Tânia teve uma idéia, recolher um pouco das tampinhas.

Achei aquilo absurdo. De que adiantaria recolher, dez, vinte, cem tampinha de uma praia habitada por centenas de milhares dela. Mas depois de vê-la com o saquinho biodegradável nas mãos, e a insistência em abaixar e levantar, a cada metro, recolhendo as tampinhas uma a uma, vi que o esforço não era em vão. As batalhas impossíveis é que precisam ser travadas. Deixei Tânia recolher mais um pouco. Chamei-a, e tomei seu lugar.

Estava a recolher poucas tampinhas quando vi aquela figura dentro da água. Um chapéu de palha gasto, uma camisa azul e uma vara. Localizava-se pouco depois dos corais, com a água na altura do umbigo. Minuciosamente tirava um camarão cru do pote pendurado ao pescoço, arrancava a cabeça, a casca, preparava a isca e zum! Lançava em direção contrária a maré. Não demorava mais do que dois ou três segundo e zás! Dava um tranco pra cima, sacando o peixe do mar.

Me aproximei perguntando se dava muito peixe. "Ixe, 300, 400 grama. Mai tem dia que dá é de quilo." Não duvidei. A maneira com que lançava a vara e a precisão com que pescava atestava que aquela não era uma história de pescador.

Este é o Seu Narciso.

Morador de Brasília Teimosa, Recife. Uma comunidade pobre, cercada por becos e vielas, lan house à um real, carros ambulantes com altos carros de som, restaurantes populares. E próximo da praia. Melhor, as beiradas do bairro são comidas pela praia, protegido por pedras. Seu Narciso mora ali há mais de cinquenta anos. Com uma saúde de ferro.

"Todo dia eu levanto e venho cedo pra cá. Melhó quano a maré tá baxa. As veiz fico até o meio-dia". E depois limpa em casa, pergunto. "Que nada, limpa na praia mêmo. O qui num é du homi os bicho come. Chego em casa e só frito". Seu Narciso me diz, com um sorriso entre os lábios, que fica uma delícia, comer o peixinho no fim da tarde, junto com uma birita. "Cerveja não meu fio, qui eu num gosto. É cachaça memo. Minha Pitú."

Seu Narciso tem 86 anos, a completar no dia 23 de abril. E uma saúde de ferro. Só uma vez saiu de Pernambuco, foi para o Rio. "Fiquei menos de dois ano. Num gostei não. Lugar bom é aqui." Seus filhos estudam na cidade Maravilhosa, devido a questão do emprego. "Mas todo carnaval é batata. Daqui a pouco eles tão pousano aqui". Aposentou-se faz dez anos, desde então cumpre o ritual. "Isso aqui é uma higieni mental minino. Ficá em casa pra quê?"

Narciso acha feio o que não é espelho. Pudera, seu espelho é o mar. Trabalhou durante trinta e oito anos como garçom, nas praias do Pina, Boa Viagem e em Olinda. "Esses restorante só gosta de rapaz novo. Já viu restaurante com garçom véio?". Vivia de gorjetas. Hoje, aproveita-se dos Carapau, Tipurru, Salema, Carapeba e outros peixes que fisgam o seu anzol. Depois de sacar um filhote de agulha, todo prateado, diz com orgulho: "Etá, que esse é o pexe mais procurado no almoço da praia todinha." Faça bom proveito Seu Narciso. O mar está a seu serviço.

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