quarta-feira, outubro 04, 2006

Geração Coca Cola

O que é História?
Quando penso em responder a esta pergunta, sempre me vem na cabeça a questão da Identidade. O que é uma pessoa sem história? Uma cidade, um país, um povo?
Na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, Departamento de História, me dei conta de que a História não é um amontoado de fatos, documentos, memórias. Não só apenas. Na História (e neste Departamento citado) encontramos muitas pessoas ditas inconformadas, rebeldes, revolucionárias e... egoístas! Preocupadas verdadeiramente apenas com seus textos, suas disciplinas, sua (pós) graduação-mestrado-doutorado, sua maconha. Sua rebeldia(!).
E em torno destas preocupações, uma certa dose de miséria. Básico: crianças, adultos, caminhando pelo espaço do departamento, entre estudantes entretidos, ambos concentrados principalmente na lanchonete. Alguns desgutam textos, outros vão em busca de trocados e latinhas. A disputa de latinhas nesta faculdade é acirrada!
Os catadores de latinhas e trocados estão ali. Quase todos os dias. Perceptivelmente imperceptíveis. Sentado, observo como as pessoas se relacionam com eles(as). Poucos na verdade estabelecem uma relação, um olho no olho. Todos os vêem mas, são poucos os que os enxergam.
Depois de meses, voltando a este departamento no qual vivi 06 anos de minha curta vida, me assusto. O espanto veio ao reencontrar um menino que conheci há quatro anos atrás. Hoje, já é um garoto. Os músculos começam a se apresentar, o rosto doce ficou um pouco mais (ma)duro. Mas ainda há o sorriso porque ainda há o menino no garoto. E faz o mesmo que fazia há quatro anos atrás: pede trocados, junta latinhas.
Penso: como somos intelectuais, inteligentes. Discutimos marxismos, anarquismos, Annales, revoluções, caos, puritanismos e revoltas. Pura teoria, relegamos o concreto. Penso no texto do Vaz: "alguns poetas que conheço estavam escrevendo poemas sobre a queda da Bastilha, enquanto todos nós erámos enforcados em praças públicas."
É muito mais fácil confrontar o mundo do que o menino. É muito mais saudável - ao menos para si - resolver equações, problemas teóricos sobre a humanidade do que o problema do garoto. Dizem que nem é bom pensar sobre ele. Alguns já dizem que pensar demais sobre estas questões pode dar câncer.
E agora, falemos sobre a hipocrisia(!): se por acaso a Guarda Universitária da USP for reprimir/expulsar alguns destes garotos... Fefelechentos, historiadores, geógrafos, sociólogos, letrados, com discursos inflamados vão defender o direito deles de ficarem ali, agarrados a sua miséria, pegando a sua latinha, a sua esmola. Apagados, como sempre estão. Defendem o direito de ali estar.
Lembrando destas cenas, penso no filme de Bianchi (Cronicamente Inviável). A cena da empregada xingando a sua patroa quando esta a pega na cama da patroa transando com o namorado. A patroa ali, dando ordens, e a empregada desenbucha (algo assim): que o marido que a oprimia, que a humilhava - ao contrário dela, sempre generosa, bondosa - era melhor do que ela. Ao menos ele manifestava um desejo, uma vontade sincera.
Entendeu?
Confuso.
Bem, somos muito hipócritas.
Inclusive eu.
Escrevendo este texto - no caderninho - e o garoto passando, de lá pra cá. E eu ainda nem falei com ele. O vejo. Ele sabe disso. Mas enquanto não me dirijo a ele, é o mesmo que não vê-lo. Faço como todos que aqui critico.
Voltando. O menino pega todas as latinhas, e nenhum refrigerante. Alguns são mais "bondosos": entregam a lata em suas mãos, fazem sinal de positivo e saem felizes, com o sorriso estampado no rosto.
Responsabilidade Social.
Filho da Puta.
Oferece a latinha mas nenhum refrigerante.

Escrever o texto me deu coragem para chamar o garoto: - Ei! E aí? Faz tempo que você vem aqui hein.
Faz tempo, ele responde.
Começamos a conversar. O garoto chama-se Ítalo. Mora na favela do São Remo, ao lado da USP. Tem um irmão e uma irmã. Conheço seu irmão, mas ele não vem mais para a USP.
Ítalo é muito esperto. Quer fazer Educação Física. Falo para ele que tem este curso aqui. Diz com convicção: - Eu sei, vou estudar aqui.
Acredito nele.
Conversamos sobre escola, estudos. Tem treze anos, está na sétima série. Faz capoeira na Poli. Garoto aplicado: estuda, trabalha, faz esportes. Tem futuro. Eu acredito!
Lembro que estou com fome. Ofereço um refri: - Vamos lá dentro.
- Não tio, o segurança embaça.
- Você tá comigo, não pega nada.
- Não tio, prefiro ficar aqui.
Não insisto. Pergunto se quer um salgado: - Um enroladinho de presunto e queijo. Compro uma Coca e uma Guaraná. E os salgados.
Peço para Ítalo escolher o refri: - Não tio, escolhe você. Insisto. Não é esmola, é um presente (penso). Quero que escolha.
Pegou a Guaraná.
Conversamos bastante. Chegou a Karina, uma amiga sua. Também conversamos. Ítalo e Karina brigavam muito. Saudavelmente. Karina contou que Ítalo já deu um soco nela: - Quase chamei o meu irmão de vinte e oito anos pra bater nele.
Ítalo se despede. Vai embora. Agradece. Eu que fico mais agradecido. Tivemos um papo super bacana.
Fui para o meu morro preferido ficar olhando os carros passar. Ver as árvores, alguns pássaros. Muitos alunos. Lembrei do conto do Ferréz (O Barco Viking). Estava feliz.
Coisas simples fazem uma grande diferença.
Não sou melhor que ninguém da USP, destes companheiros de faculdade que critiquei. Estudei 06 anos na História, há quatro via o Garoto e, apenas hoje, conheci o Ítalo. Não sou melhor do que ninguém mas, mudei. Estou aprendendo algumas coisas.
Espero que as pessoas aprendam a tempo também.
Meus vinte e cinco anos estão fazendo bem para mim.

P.S.: apesar do dito e não dito, está rolando um movimento bacana dos estudantes da FFLCH contra o diretor desta Gabriel Cohn. O diretor tem a intenção de fazer mudanças estruturais nos espaços dos estudantes, lanchonetes, xerox e... não consultou ninguém. A notícia-bomba mobilizou os estudantes. Ainda bem que algo ainda mobiliza alguns...

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