domingo, janeiro 15, 2012

PINHEIRINHO? RESISTE. MOINHO? RESISTE



O PULSO AINDA PULSA


(publicado no livro "Do luto à luta", organização Mães de Maio e no livro "100 Mágoas", de Rodrigo Ciríaco)


Na porta do bar, um copo segura um homem.

Na verdade, quem o visse assim parado na porta do bar esquina da Rua Quarunás com a Rua 24 de Fevereiro não veria o copo, não veria o homem. Apenas um corpo negro, escuro, sustentando farrapos; um cheiro forte de fumaça impregnando o azulejado e os olhos castanhos, vermelhos, marcados com os restos de uma visão do que foram barracos. Quem olhasse para ele naquela noite, fosse por minutos, fosse por horas, veria sempre a mesma coisa: cinzas.

São nomes agora confusos que na sua mente perfuram, atravessam, rasgam: São Rafael, Lajeado, Vila do Nilo, Vila Santa Catarina, Vila Andrade, Naval, Pau Queimado, Zaki Narchi, Raimundo Pereira de Magalhães, Chácara Bela Vista, Jardim Aeroporto, Real Parque. Conhecia todos estes lugares. Alguns, pelas lideranças diretas. Outros, por acompanhar pelos jornais. E agora Tiquatira.

Por duas vezes entre dois dias: Tiquatira.

Não importa o quanto digam que foi acidente. Que um morador descuidado esqueceu um fogão ligado, que um gato deu curto e espalhou faíscas para todos os lados. Que fizeram fogueira no lugar errado. Seu João Benedito, véio de guerra, que sempre foi líder nato nesta selva de pedra, sabe o quanto vale um terreno nesta terra. O quanto incomodava a ocupação de sua gente nela. Conhece bem a contabilidade, a velocidade com que supostos acidentes aumentam nas favelas conforme o interesse da especulação imobiliária cresce na cidade sem trégua.

“Treze incêndios acidentais nos últimos dois anos? Parece brincadeira...”.

Quase ensaia o último trago, quando da mente evasiva abruptamente é resgatado pelo baque-seco da garrafa de pinga que bate contra o teto da estufa de vidro que em seu interior traz resguardado ovos cozidos rosas e amarelos:

- Mais uma, seu Dito?

Estende o braço ao homem por trás do balcão e faz um gesto qualquer com a cabeça, que o mesmo entende como um sim, e deixa-o colocar mais uma dose antes de vê-lo voltar pra sua pequena cozinha.

Seu Dito continua em pé, na porta do bar. O copo o ajuda a se segurar.

Crianças correndo descalças no chão de barro levando a pipa aparecem em suas vistas, num piscar. E são seguidas de outras mães correndo com filhos nas mãos e no colo, gritando: “Meu Deus, meu Deus!” se ajoelhando e colocando-se a rezar. Homens que madrugavam no caminho pro trabalho com marmita feita antes do sol raiar, aparecem agora com baldes, panelas, mangueiras e latas velhas tentando o fogo apagar.

Tudo é em vão. A fogueira é insaciável. O incêndio incontrolável e a tudo devora muito rápido. O que se levou anos para construir, montar, trazer, pagar, em minutos vira fumaça. Cinzas no ar.

Cama, fogão, geladeira; fotos, roupas, documentos, lembranças de vidas inteiras. Nada, nada. Quase nada fica para guardar. De sobra um terreno. Em ruínas cinza e preto, madeiras e o estralo; estragos, reforçados pelas manchas carbonizadas que cobrem as centenas de adultos, jovens, mulheres, velhos, cachorros e crianças, que entre as buscas dos bombeiros tentam se deparar com algo útil.

- Foi tudo – alguém diz.

- Tudo é muito pra quem não tinha quase nada. – outro responde

Se pudesse seu Dito sentava, na parede encostava, e chorava. Esta era sua vontade. Afinal, tudo parecia em vão. Uma luta de anos consumida em segundos, espalhada como pó pelo chão.

Não pode. De longe, um de seus filhos caminha, o avista. Aproxima-se e se senta em um dos degraus da porta do bar. Pés descalços, sem camisa; um shortinho vermelho. Brinca perto do pai, com algumas bolinhas de gude. Após alguns minutos em silêncio, com uma voz mansa, como se não quisesse incomodar, olha e pergunta:

- Pai, meu caderno queimô. Como que eu vô estudá amanhã?

Um nó fecha a garganta de seu Dito. Ele trava, para. Vacila. Não sabe o que dizer. Antes de seu filho perceber, responde com outra pergunta:

Pai já deixô alguma coisa faltar?

- Não, nunca.

- Então se aquieta. Amanhã é outro dia. Pai cedo madruga. Consegue seu caderno, dos seus irmãos, cês vão pra escola estudá.

As palavras do pequeno tiraram seu Dito do quase transe que estava até então. Ele abandona o copo, saca algumas moedas do bolso, paga o que deve e estende para o seu filho sua mão. Surpreendendo o menino, suspende-o com um puxão, coloca-o acima de sua cabeça com as pernas entre o seu pescoço:

- Bôra? Então segura, peão!

Sai trotando, brincando com o pequeno em seus ombros. O vazio nos bolsos, o aperto no estômago, mas com garra e coragem. Tímidas na expressão mas grandes no coração. A mente já labutando, maquinando ideias. Para improvisar trabalho, roupas, alimentação. Resolver os problemas da escola, saúde, documentação. Tudo precisaria de muita solidariedade, luta e cooperação. Entre sua família, amigos e vizinhos era o que não faltava. Não. E novos. Novos planos de Ocupação. Afinal, não havia outra solução. O abandono dos Governos, a insensibilidade aos apelos. Os seus direitos, garantidos em Constituição. Não. Os seus não podiam e não iriam ficar na rua, ao léu. Jogados no chão. Não enquanto forças tivesse. Não enquanto pudesse. Se fosse cair, que estivesse em pé. Nunca ajoelhado, de cabeça baixa ou estendendo como um pedinte suas mãos.

Na porta do bar apenas o copo. Sob ele, um balcão. Memórias de um passado que agora não seguram mais Seu João. Aliás, nem nada. Nem ninguém.

2 comentários:

Sil Kaiala disse...

Muito bom, muito bom mesmoooo.....
Olha só!
Me apaixonei pelo que você escreve, pena que nao comprei aqui em Salvador no Sarau da Blackitude. Preciso tê-los. Como eu faço?
Você é um Sucesso.... Parabéns!
E Muita Luz GUERREIRO!

Guilhermé disse...

E gira a roda... Sem prêmio de consolação.

Lindo, velho.